Servir e ser servido

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Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro

A sociedade brasileira é profunda e violentamente desigual. Contudo, tanto ricos quanto pobres participam dos jogos simbólicos de ostentação e status. Pode parecer surpreendente que os pobres também se envolvam nesses jogos que ratificam valores e medidas que os subestimam, mas é difícil escapar a esse destino. Nos EUA, onde a cultura africana foi dizimada pela crueldade puritana, fenômenos semelhantes ilustram o modo como certas ideias se impõem quase inevitavelmente à mentalidade daqueles que por séculos foram submetidos a toda sorte de constrangimento e coerção. O passing (as white) é um desses fenômenos no qual constatamos dolorosamente o efeito nefasto da escravidão. Negros e mestiços espontaneamente se fazem passar por brancos para usufruir dos seus privilégios, não poucas vezes às custas da proximidade com seus familiares. Michael Jackson talvez seja o maior símbolo desse fenômeno, o triste e trágico paroxismo das consequências subjetivas da escravidão.

No Brasil, em bares, restaurantes, camarotes e espaços VIP, pessoas que anseiam fervorosamente distinguir-se e ser reconhecidas como superiores — como elite — esperam ser servidas com presteza e alegria, como se atender seus caprichos vulgares fosse um privilégio. A soi-disant elite brasileira é obtusa a ponto de nem sequer conseguir se emancipar dos padrões coloniais, se restringindo a macaquear as pretensões de seus ancestrais. No entanto, a profundidade da obra da escravidão é suficiente para contaminar toda a sociedade, isto é, para fazer com que seus anseios sejam também padrões aspirados por grande parte da população. Daí que circula por toda a sociedade esse desejo de ser servido, como se ele funcionasse como uma espécie de selo do valor próprio. Dois tipos bem marcados se derivam dessa contaminação, o boçal que nem mesmo se digna a olhar as pessoas que o servem nos estabelecimentos que frequenta, como se temesse se contaminar com a suposta inferioridade alheia, e o próprio servente, dócil e servil, apequenado pela crença repetidamente imposta de sua própria inferioridade. Não é à toa que a pergunta “Sabe com quem você está falando?” é tão frequentemente repetida em nosso país.

O atendimento em Salvador é um dos mais sofríveis do país e, embora isso certamente provoque incômodo, não deixa também de despertar, pelo menos em mim, alguma simpatia. Ninguém é obrigado a mostrar-se satisfeito ganhando uma porcaria e sendo sistematicamente desrespeitado por aqueles a quem serve. Essa rebeldia é uma amostra de dignidade que me satisfaz. Em São Paulo, por outro lado, tenho a frequente impressão de que as pessoas estão de tal modo acostumadas a serem importunadas por boçais que parece reinar um servilismo desconcertante e preventivamente calculado. Como se elas se colocassem deliberadamente numa posição servil apenas para não ter que adicionar à carga de seus infortúnios diários o fardo de ter que lidar com alguém incomodado porque elas se apresentam como iguais. A verdade é que a igualdade e a dignidade no Brasil ofendem os que se creem no direito de sentir-se superiores a todo mundo. E muita gente joga esse jogo.

A prevalência do fetiche colonial pelo serviçalismo impede que possamos desfrutar do prazer de servir. Servir não é apenas um jogo social de gente pedante e deslumbrada, é também um gesto de cuidado e amor. A disposição a prestar atenção à necessidade dos outros e a satisfazê-la pode dar lugar a uma nova dinâmica intersubjetiva. É um efeito cascata, a inclinação a sair de si e prestar atenção aos outros não raras vezes provoca efeitos inesperados e, pouco a pouco, o sentimento provocado por tais contingências nos parece mais interessante e promissor que a garantida satisfação dos nossos próprios anseios. Não é isso o que nos ensina o amor e a amizade? Aprendemos com eles que a satisfação dos outros é também a nossa e, assim, que somos também esses outros que satisfazemos. É quando a alegria de servir se enraiza profundamente em nós que certas transformações tem lugar e a mim me parece que parte significativa da importância que tantos pensadores atribuem à amizade (Aristóteles e Nietzsche, para ficar em dois figurões) se deve em grande medida às mudanças provocadas por esse sentimento.

A desigualdade, a estúpida adesão aos valores, padrões e heranças coloniais, são fatores que impedem que nossa sociedade se oriente a certas mudanças necessárias. Estes fatores conservam as pessoas separadas, isoladas em seus espaços de estabilidade, evitando assim que a espontaneidade da interação entre pessoas diferentes possa romper e fazer penetrar na bolha que as cerca a semente de uma mudança. Não há dúvida que uma nova atitude diante do servir é imprescindível para que possamos fazer medrar algo diferente no Brasil, mas é difícil deter hábitos e modos de ver sedimentados ao longo de séculos.

PS. A vontade de ser servido como um símbolo de status é uma das expressões da ideia que os fracos e impotentes fazem do poder, de modo semelhante ao comentário de Deleuze sobre uma certa ideia da vontade de potência.

PPS. Mudei o blog do Blogger (da Google, que sucateou o serviço por anos a fio) pro WordPress com um servidor dedicado e por isso o link do feed (RSS) mudou para: https://brausen.com.br/feed/

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