Oh Sunday, Monday, autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It’s good at least to live and I agree
He seems so pleased at least
And it’s so good to live in peace and
Sunday, Monday, years and I agree
A falta dessa paz que Caetano canta tem nos escravizado, tem nos mantido reféns dos restauradores da ordem. Eu sempre me surpreendo com o modo como as pessoas em Madrid, no centro ou nas periferias, vão pela rua num nível de distração que a maioria dos brasileiros não costuma ter. Às vezes, enquanto estou caminhando pela calçada, uma pessoa se aproxima e começar andar atrás de mim, no mesmo passo. Eu imediatamente dou um passo pro lado e me viro. É um reflexo. Vejo espantado — e eu reparo sempre que isso acontece — as pessoas abrindo a porta de casa sem estarem atentas a quem se aproxima. É preciso ter dentro de si uma segurança que não parece tão comum no Brasil, algo que se entranha forte em nossa alma, como se entranha o medo. Mas pode ser que eu esteja enganado. Mesmo no centro de Salvador — Campo Grande, Garcia, Largo 2 de Julho, Relógio de São Pedro, Pelourinho — onde há faixas da cidade em que vivem muitas pessoas ricas, a sensação de segurança é baixa. A gente sabe que os mais ricos geralmente são bem servidos de segurança. A Avenida Paulista, e a região do centro de São Paulo, é uma outra história. Consolação, Bela Vista, Rua Augusta e até a Frei Caneca, são lugares que você pode sentir o tipo de tranquilidade comum aqui em Madrid (e na London de Caetano, imagino)…
(A menos que você seja gay. Neste caso você corre o risco de encontrar alguém como Bolsonaro, alguém que acredita seriamente que batendo numa criança ela “se corrige” e deixa de ser gay. Se este for o infortunado caso a pessoa toma um corretivo pra deixar de ser gay. Não precisa ser gênio pra saber que a violência não inibe o desejo, mas apenas induz a restrição do comportamento — ainda que seja precisamente isso o que muitos querem. Se um homem que gosta de mulheres levasse um choque [qualquer coisa que fosse o equivalante automatizado da violência] toda vez que olhasse para uma mulher na rua ou em qualquer parte, ele logo poderia se sentir inibido a olhar para mulheres [manifestação comportamental do desejo] mas de forma alguma perderia o desejo. O mais provável é que esse pobre diabo entrasse em depressão e morresse, mas ele nunca viraria gay. Assim me parece: ninguém perde o desejo que tem e ninguém escolhe o desejo tem, o desejo se aceita ou se inibe suas manifestações. Quem acha que pode forçar as pessoas a desejarem segundo o que lhe parece correto só pode ser um idiota que nunca prestou atenção ao seu próprio desejo.)
… e essa tranquilidade faz falta. As pessoas desejam estar em paz, andar pelas ruas sem preocupações. E então quando elas se perguntam: “Certo, essa falta de paz e tranquilidade resulta da criminalidade e da violência, como fazemos para acabar com isso?”, duas costumam ser as respostas: educação e punição. A educação é em realidade somente um atestado de boas intenções. Um discurso que todo mundo repete mas que ninguém pratica, um discurso, aliás, próprio à tão característica hipocrisia brasileira e tão falso como uma nota de 3. Muitos dos que pedem burocraticamente educação são os primeiros a chamar de vagabundos os professores que exigem melhores salários e condições de trabalho. E que apanham por isso. Na certa, são pessoas da turma dos que acham que educar é vocação e que por isso os professores não precisam receber bons salários. Conveniente! Um comprimisso com a educação que não se manifesta em nenhuma ação concreta que produza melhores condições para que as pessoas se sintam estimuladas a trabalhar na área. Professor tem que ser um mártir que aceita de saída que vai sofrer pelo resto da vida. A outra solução para a violência todo mundo já sabe, a punição. A justiça vigilante, não apenas dos policiais, mas dos cidadãos de bem armados e atentos para exterminar a criminalidade em toda ocasião em que ela surgir (segundo seu juízo).
E pra legitimar a vontade de ser justiceiro que enfeitiça os homens que se sentem guerreiros na luta do bem contra o mal é preciso um sistema político que normalize essa atitude, um sistema policialesco no qual a paz viria, vejam só, da eterna intimidação dos homens de bem. Intimidação é a palavra. Da eterna ameaça da violência por parte dos vigilantes, dos guerreiros armados. Essa paz que supostamente viria da guerra ou da constante vigilância armada é bem diferente da paz nas ruas de Madrid e das cidades europeias. Quem não sabe a diferença entre a intimidação e paz nunca conheceu esta última e suspeito que, secretamemte, quer apenas uma desculpa para intimidar. A paz na Europa é o resultado da preocupação histórica e política em diminuir a desigualdade, uma preocupação que não existe entre nós (curiosamente, nem mesmo como discurso hipócrita, como no caso da educação).
Aos que acreditam no poder sanador da violência/vigilância nunca lhes ocorre pensar que a falta de paz e segurança nas nossas cidades tem relação com a profunda desigualdade dentro da sociedade brasileira. Nunca lhes ocorre que a violência possa ter relação com aquilo que Elton Medeiros cantou numa de suas músicas:
Uns com tanto
Outros tantos com algum
Mas a maioria sem nenhum
E não é sem razão que não lhes ocorre pensar isso. Quem admite que a desigualdade tem estreita relação com a violência se vê forçado a refletir sobre essa ela e, consequentemente, atuar para mitigá-la. E para esse problema não há soluções tão fáceis como simplesmente aumentar o número de vigilantes e punidores nas ruas. A única solução possível, que é imensamente complexa, requer que se encontre meios de distribuir a riqueza e de diminuir a desigualdade. Mas a quem interessa diminuir a desigualdade no Brasil?
A verdade é que se a sociedade brasileira se transforma, certas pessoas perdem o privilégio, perdem o status que tem dentro dela. Perdem a falsa respeitabilidade de que disfrutam nesse sistema. E a expansão dessa respeitabilidade é um obstáculo à manutenção da nossa escravidão pelo medo e pela pobreza. Para conservar essa ordem existe uma receita de escravidão, uma receita que nos induz, de tempos em tempos, a recorrer às figuras de ordem, como em 64 e como agora. A receita consiste em manter altos os níveis de desigualdade e, sempre que surgir uma crise — e elas sempre surgirão —, vender como solução para os problemas derivados dessa desigualdade a figura de uma autoridade que contornará o medo reinante com soluções paternalistas não negociadas, impostas. Nenhum pai autoritário negocia com o filho, ele apenas ordena e o intimida a fazer o que é supostamente necessário. Essa receita autoritária, ao invés de nos redimir do caos, nos aprisiona nesse ciclo do qual não podemos sair, porque ela não é verdadeiramente uma solução, mas apenas um teatro feito para dissimular a perpetuação das condições iniciais. E porque as pessoas estão aprisionadas pelo medo, desencantadas com o fracasso das soluções políticas negociadas após as primeiras intervenções das forças da ordem, elas aceitam qualquer atalho, qualquer caminho rápido que pareça restituir o que elas em realidade nunca tiveram. Marcos Nobre fala sobre algo assim num dos seus últimos artigos na Piauí. E para sair desse ciclo de medo só cultivando uma das virtudes mais difíceis de se alcançar, a coragem. Para uma sociedade forjada na escravidão é muito difícil encontrar a coragem necessária para se emancipar das forças paternalistas da autoridade e da ordem. O Brasil foi construído a revelia das obras da escravidão, desconsiderando as marcas que esse sombrio legado deixou na alma das pessoas e em seu modo de ver o mundo.
Em seu livro sobre o movimento negro, Antonio Risério fala das marcas hediondas que a escravidão deixou na sociedade americana. O passing (as white) talvez seja uma das mais dolorosas de constatar, porque ela tem como símbolo maior Michael Jackson. No Brasil essas marcas não são menos profundas, embora a cultura negra não tenha sido dizimada como foi nos Estados Unidos, conforme conta Riserio. No entanto, nós internalizamos o modelo de ordem social baseado na força e no desrespeito entre as pessoas, o modelo colonial da violência e da arbitrariedade. E sempre que topamos com uma situação em que o medo e a insegurança crescem, onde a desordem parece imperar, nós não nos perguntamos seriamente pelas causas dessa desordem e buscamos soluções, mas pedimos uma intervenção autoritária, pedimos que seja restituído o mesmo modelo que nos trouxe até aqui. A receita da escravidão é o medo, cuidadosamente vigiado para que nunca deixe circular entre nós, quer seja por meio do crime, quer seja por meio da intimidação de uma ordem autoritária — pondo em marcha um circuito difícil de escapar.
Enquanto não formos capazes de fazer as pessoas entenderem de modo simples a contribuição decisiva da pobreza e da desigualdade para a violência, enquanto a luta do bem contra o mal prevalecer como única referência por meio da qual se explica a criminalidade, seremos reféns do conto de fadas salvacionista dos restauradores da ordem. Seremos escravos dessa receita de escravidão. Nada, senão o engajamento político, pode nos dirigir a soluções reais para os nossos problemas — sejam eles a criminalidade ou a corrupção — e não restam dúvidas de que há muitas pessoas interessadas em preservar esse ciclo de medo e de restauração da ordem, em nos manter cativos dessa dinâmica inescapável. Os interessados são aqueles que tem a perder com a redução da desigualdade, seja em termos financeiros, seja em termos de status. É uma luta difícil, mas necessária, e exige que a esquerda, principalmente, saia da sua bolha e volte a ser capaz de falar com as pessoas, com o povo.
E ai Leo. Concordo com o seu ponto de vista.
"A paz na Europa é o resultado da preocupação histórica e política em diminuir a desigualdade". Eu acharia positivo acrecentar a preocupação cultural. A preocupação cultural é conséquencia da historica e a política é consequencia da cultutal (em uma democracia). Tal como o passado nao pode ser mudado, não podemos mudar a preocupação historica. E a peocuoação política só pode ser mudada se houver uma mudança no cultural antes (outra vez, em um sistema democrático). Tudo isso pra dizer que na minha opinião, as mudanças que buscamos devem acontecer a nivel cultural. Ou seja, deveriamos trabalhar para que nossa cultura fosse mais preocupada socialmente e mais ativa politicamente (mas isso vc ja falou).
Sem dúvida, precisamos mudar nossa cultura. Aliás, eu gosto de usar uma expressão ainda tão geral quanto, mas que salienta também a dimensão psicológica, axiológica e holística: precisamos mudar nossa forma de vida.
Mas quem é que está comentando? não dá pra saber e eu imagino que te conheço
Foi mal! Não tinha percebido que tinha postado como anônimo. Acho que você sabe quem eu sou!
Juan