A intolerância fere o espírito científico

A

Quando se chocam dois princípios que não podem ser reconciliados, cada homem declara o outro um tolo e um herege

Wittgenstein, Sobre a certeza, § 611.

Em certo sentido Einstein não aceitou as consequências da mecânica quântica, a abolição do carácter determístico do mundo (da realidade). É não apenas permitido não aceitar os sentidos e as verdades do outro — isso é inevitável! O intolerante, no entanto, é alguém que não aceita aquilo de que se orgulha o espírito ilustrado da “civilização ocidental”: a aposta na razão como instrumento para mediar conflitos. E essa confiança na razão se expressa na defesa de Voltaire do direito do outro dizer o que quer que seja. O intolerante é alguém que por princípio age como se não devesse respeito a nenhuma forma de pensamento diferente da dele. Defende direitos humanos? Maconheiro! Casamento igualitário? Gayzista! De esquerda? Comunista. Em seus discursos o intolerante está sempre pedindo que seu interlocutor não respeite também aquilo de que ele fala. “Venha, não respeite comigo!” Ou seja, nesse sentido a intolerância tem um forte impacto epistêmico, cognitivo, etc. E acho (mas só acho) que assim caminha as discussões sobre injustiça epistêmica. Nada mais distante da defesa de uma democracia liberal, do pluralismo, da ciência e do progresso. Convicções precisam ser dosadas, sempre, mesmo as supostamente melhores entre elas, do contrário acabamos como sir Frazer dizendo que as ações de outros povos são proto-ciência — a intolerância é o cúmulo da convicção e um distanciamento da aposta na razão que propõe como substituito um culto cego ao passado e à autoridade que nem de perto me parecem boas escolhas.

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Eu entendo que alguém possa ser assim, no seguinte sentido: eu entendo que o condicionamento (a repetição de ações e ideias) tem um papel fundamental na nossa formação, na gênese da nossa personalidade e carácter. Mas eu não entendo que essa possa ser uma escolha (isto é, o resultado de uma reflexão e de uma opção voluntária). Não somos muito diferentes dos outros animais como nós, a regularidade (repetição) das ações ainda tem papel simbólico forte e admitir isso não significa se tornar behaviorista, significa apenas reconhecer que aprendemos repetindo. A repetição é o modo pelo qual aprendemos a desenvolver respostas às situações em que nos encontramos. Mas em algum ponto é preciso entender que repetir é uma etapa necessária na formação de um modo auto-sustentável de lidar com o mundo, mas que precisa ser superada. Uma vez adquirido essa estabilidade (essa habilidade) é quase uma obrigação biológica refletir e considerar as próprias respostas até então como expressão de um modo herdado de enfrentar a realidade. Bem, não sou naturalista, inatista nem nada, aliás, nada mais distante das minha crenças, quero apenas dizer que entender o papel da repetição e do adestramento na vida humana deveria determinar uma reflexão sobre a necessidade da emancipação — e que mesmo sob um ponto de vista estritamente naturalista (inatista), o conservadorismo dos intolerantes é injustificado. E não se ajusta aos ideiais científicos. É apenas um consolo de quem ainda não se emancipou da influência da repetição (dos pais, dos modelos e referências, qualquer que sejam) e não está disposto a buscar suas próprias respostas aos estímulos e ao mundo — estímulos que já nem sequer são os mesmos que enfrentaram seus próprios modelos formadores.

PS. José Medina tem um monte da artigos sobre injustiça epistêmica, eu tenho muita vontade de ler, mas agora não posso. On Refusing to Believe: Insensitivity and Self-Ignorance. Análise de casos concretos de como a injustiça epistêmica produz danos reais no sistema de justiça americano: Epistemic Activism and the Politics of Credibility: Testimonial Injustice Inside/Outside a North Carolina Jail. É uma área muito interessante e essa ideia de credibilidade (respeito/autoridade) como um eixo para se pensar razão e política é um achado.

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