A falência do ensino fundamental, público e privado

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Difícil encontrar quem discorde da afirmação de que a educação pública fundamental no Brasil está falida. Daí se segue a constatação de que a estrutura material das escolas em geral está sucateada, os professores desestimulados pelos baixos salários, os planos pedagógicos, ultrapassados, não fazem frente a uma realidade para a qual não foram preparados, entre outras coisas. Diante disso, pode-se pensar que a educação fundamental oferecida nas escolas privadas escapa do diagnóstico inicial. Grande equívoco. Por certo, parte das escolas particulares oferece condições notoriamente melhores que as escolas públicas, além de remunerar melhor seus professores — o que produz, por consequência, um estímulo ao trabalho. Mas a pergunta que revela o nivelamento e a precariedade compartilhada entre os dois tipos de escolas é elementar: para que os alunos dessas escolas são preparados? A resposta é simples: para o vestibular.

O ensino fundamental no Brasil reflete nossa realidade, ele é inteiramente projetado para pré-formar indivíduos que no futuro serão profissionais. E não se trata de pensar aqui uma crítica radical ao sistema de educação em massa, nos moldes de Ivan Ilich, uma crítica que denuncia a incapacidade sistêmica de modelos universais para formar valores, para estimular a autonomia e as singularidades de cada sujeito. Trata-se, isso sim, de observar que os princípios educacionais que orientam o ensino nessas escolas são incapazes de formar para a cidadania, insuficientes para fazer nascer nos jovens uma concepção política da sua relação com a sociedade, e que se posicionam frente aos desafios postos pela necessidade de aceitar a diferença.

No Brasil, uma escola é avaliada quase exclusivamente pela sua capacidade de colocar seus alunos dentro das grandes Universidades. Todas os outros critérios são secundários e dispensáveis se não vierem acompanhados de altos índices de aprovação. Obviamente, não é desimportante um critério geral técnico de domínio instrumental de conhecimentos, mas uma educação não pode se reduzir a isso sem tristes consequências sociais. Um aluno dificilmente sabe mais sobre a História da Bahia (ou sobre o Samba de roda do recôncavo, para dar um exemplo preciso) porque estuda numa escola particular e não numa escola pública (a precariedade é generalizada quando se trata de pensar a educação em qualquer dimensão não técnica). Onde impera uma visão instrumental da educação, valor e utilidade se confundem, tornando dispensável tudo que não estiver encaixado no programa de conteúdos exigido pelo vestibular.

O resultado disso é uma cidadania idiossincrática, resultante não do esforço sistemático em forjá-la conjuntamente ao treinamento instrumental, mas mero produto circunstancial — e por que não dizer, acidental — de fatores e contextos favoráveis, que uns podem ter a sorte de encontrar, mas que a maioria não tem. Podemos seguramente compreender como esse tipo de educação forma parte de um sistema econômico, se enquadra no plano de exigências que precisamos cumprir para aprimorar nossa economia, diversificá-la, fortalecê-la. Mas como uma educação assim pode fazer frente a problema muito particulares da nossa sociedade, como o preconceito, o racismo, a desigualidade, o bacharelismo que resulta de tudo isso? Não pode.

Nossa sociedade está desarmada para enfrentar esses problemas e a fé cega na economia como panaceia para todos nossos males impede que enxerguemos a necessidade de contorná-los apostando numa educação não estritamente instrumental, que incorpore valor e não apenas utilidade na grade de conteúdos e nas práticas pedagógicas. A fé cega no poder libertador do mercado impulsiona índices massivos de investimento em educação técnica e superior, em comparação ao tímido e minguado investimento em educação fundamental. A restruturação mais que urgente do nosso ensino básico vive apenas nos sonhos de quem gostaria de viver num país mais igual, não apenas sob o ponto de vista econômico, mas social.

Essa, aliás, é uma das grandes críticas que se pode fazer ao governo federal do PT (a despeito dos méritos que se pode apontar ao governo, que não anulam essa crítica). Volta e meia me volta à cabeça uma frase de, imaginem só, Fernando Henrique Cardoso (e que talvez eu já tenha citado aqui), enunciada numa entrevista, salvo engano, à revista Piauí: “o mercado cria lucro, não valores”. Essa lição não foi aprendida nem por ele, nem pelos que o sucederam.


O sistema de cotas é uma declaração de que não se consegue formar jovens negros (e pobres) nem dentro do marco de uma educação dirigida por necessidades de mercado. Por não conseguir isso, é preciso um sistema que equilibre as oportunidades de sorte que não resulte do desequilíbrio notório entre escolas públicas e privadas a manutenção de uma desigualdade econômica. É preciso oferecer acesso à Universidade como oportunidade de ascensão econômica. E isso significa que a própria Universidade, na ausência de uma formação sólida, é convertida num mero instrumento. Enquanto as deficiências da formação básica não forem enfrentadas, continuará a ser negada a jovens negros uma educação de qualidade, apesar da compensação oferecida pelas cotas. Eu confesso envergonhado que já fui contra as cotas e, apesar de ter apagado a maioria dos posts em que defendia minha antiga posição, continuo achando que a imagem de um braço torto engessado reflete com fidelidade as contradições expressas nas tímidas políticas para educação básica e as travas que elas impõem à luta por mais justiça social.

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