Com quem aprendemos? O que nos ensina?

Os professores são os primeiros que vem a nossa mente quando consideramos a pergunta “com quem aprendemos?”, mas a verdade é aprendemos muito antes que eles façam parte da nossa vida. Aprendemos com nossos pais, irmãos e irmãs, amigas e amigos, namoradas e namorados e assim por diante. Aprender não é necessariamente uma questão sobre quem nos ensina o quê, pois pode ser também uma questão de atitude, um estar atento ao que se pode aprender em determinada situação. Por exemplo, uma criança aprende com a mãe e com o pai porque naturalmente está atenta ao que eles fazem — ela precisa estar atenta.

No Livro do Desassosego, de Fernando Pessoa (ou melhor, de Bernardo Soares), encontrei esse comentário precioso:

Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.

É isso, está tudo dito aí. No entanto, não deixamos de sentir algum estranhamento diante desse comentário. Para nós, aprender tem um sentido quase técnico. Isto é, aprender parece se restringir a determinado currículo, parece se limitar a determinados conteúdos ministrados por uma autoridade legitimamente constituída para transmiti-los. Em linhas gerais esse é o modelo de tudo que compreendemos como um aprendizado legítimo. Portanto, talvez o estranhamento venha disso: como pode que alguém nos ensine algo que não sabe? Como é possível que mendigos, charlatães e bandidos possam ser a fonte de qualquer aprendizado?

Em alguma medida, a institucionalização do aprendizado pode embotar a capacidade natural de aprender. A institucionalização do aprendizado consiste no afunilamento do amplo espectro da aprendizagem em direção a instituições de educação (escolas, universidades, etc.) e seus responsáveis (professores, diretores, etc.). Este processo de institucionalização canaliza o aprendizado por certas vias e, naturalmente, desidrata as vias alteranativas, além de atrofiar o próprio olhar que, em outras circunstâncias, estaria mais atento ao que pode aprender. Quanto mais os canais oficiais se articulam à dinâmica da sociedade, menos importante se torna qualquer via não institucional de aprendizado. A crítica de Ivan Illich às escolas (em seu livro, A sociedade sem escolas) se deve a este profundo enraizamento da educação no âmbito da economia. O aprendizado, segundo Illich, se orienta então a partir das necessidades de mercado, de tal sorte que a certificação se transforma numa das principais características de todo o processo educacional. Isto é, o processo de emissão de títulos e diplomas se converte num dos eixos principais de toda dinâmica educacional, pois eles funcionam como critérios e medidas para distintos processos sociais todos orientados, ao fim e ao cabo, a um propósito mercadológico e às engrenagens do processo produtivo. Assim, a educação e o aprendizado se reduzem a dois processos mutuamente relacionados: a formação e a capacitação técnica e a certificação que atesta este dominio técnico segundo a necessidade logística do mercado. Desse modo, a multiplicidade do espectro educacional não diz respeito à variedade dos interesses humanos, mas reflete antes a variedade de conhecimentos aglutinados em disciplinas técnicas e a multiplicidade dos propósitos produtivos. Não por outra razão o modelo de educação aspirado por Illich — se é que podemos caracterizá-lo como modelo — gira em torno da ideia de autonomia, visa desenvolver, para cada indivíduo, o conjunto de capacidades relativas aos seus próprios interesses e aptidões. Trata-se de encontrar a lei interna do aprendizado própria a todo indivíduo e não meramente ajustá-lo a um conjunto já organizado de questões e técnicas. Não é pouco espinhosa a tarefa de criticar os modelos massivos de educação porque logo nos deparamos com uma crítica difícil: como produzir uma educação tão particularizada? A educação em massa, como o próprio processo de produção em massa, tem vantagens em termos operacionais que são difíceis de ser conservadas ou substituídas (e tendemos a querer conservá-las). Mas não me interessa, aqui, debater essa questão, o que importa é ter em vista esse afunilamento próprio à institucionalização, o modo como ela fecha ou, pelo menos, tende a nos fazer ter menos respeito por fontes de aprendizado não mediados pelas vias ou autoridades institucionais.

Minha esposa, que é uma excelente professora, sempre me sugeriu a ideia de que deveríamos dissolver a distinção entre professores e alunos. Senão dissolver ao menos flexibilizá-la, de tal sorte que possamos ver o outro sempre como uma fonte potencial de aprendizado. Às vezes quando nos interessamos honestamente pelo que certas pessoas fazem com cuidado, podemos ser surpreendidos não apenas por uma capacidade inata para ensinar por parte dessas pessoas, como também aparece, pela singularidade da circunstância, esmero e atenção que parecem fundamentais para que qualquer coisa possa ser ensinada. Esses dias estávamos na Galicia e, encantados pela hospitalidade, nos interessamos pela fantástica culinária galega. De repente, diante do nosso fascínio, vimos surgir por todos os lados professores atentos e dedicados a nos ensinar os segredos da culinária galega. É um exemplo trivial mas ilustrativo de como todos podem ser potenciais professores.

Ainda que as pessoas nem sempre se disponham a ensinar o que sabem, a serem professores, o mais fundamental em relação ao aprendizado é que nunca deixemos de ser alunos, isto é, que nunca abandonemos a atitude de alguém que pode potencialmente aprender — com o que quer que seja, com quem quer que seja. É essa uma das lições desse comentário do Livro do Desassossego. A medida que o tempo passa e nos tornamos mais velhos parece natural que o acúmulo de ideias, verdades, certezas, nos torne impermeáveis a qualquer visão alternativa, a qualquer revisão de nossa imagem de mundo. Esse desprendimento tampouco é uma atitude estimulada no modelo curricular das nossas instituições de ensinos, orientadas àquilo que Kuhn denominou como ciência normal. Nenhuma instituição ensina revoluções e transformações de paradigmas. A tendência à confirmação que aparece na base das nossas visões de mundo não é uma deficiência, mas uma característica própria a todos nós, e se devemos mitigar seus efeitos em nome de uma posição mais dialógica com respeito a diferenças é preciso que não nos deixemos encantar pelas autoridades e normas que construímos para lidar com o mundo. Precisamos alimentar e conservar a atitude de alguém que está pronto a aprender e renovar as lentes por meio das quais vê o mundo.

PS. Os cursos universitários que ensinam a ser feliz não parecem justamente uma tentativa de dar um tratamento “técnico” àquilo que não pode ser ensinado como técnica? Àquilo que só pode ser aprendido por cada um à sua maneira. Nesse sentido, eles são sintoma de parte do que falei acima. O velho Freud disse uma vez que não há regra de ouro para a felicidade.. mais uma razão que estejamos sempre atentos, pois nunca sabemos quando, onde ou quem pode nos ensinar a ser feliz.

Viagens de ônibus e banhos de mar

É lugar-comum dizer que os europeus experimentam o clima e a natureza de uma maneira muito particular. E é natural que seja assim. Quando o sol sai, eles se esticam em qualquer lugar por onde se estendam seus raios e é verdadeiramente uma benção. Pensando nisso, esses dias lembrei o quanto nós mesmos às vezes não damos conta da nossa relação com o mundo natural. (Pra não deixar de falar de Wittgenstein, como convém, não posso esquecer quantas vezes ele afirmou que o é mais importante em geral escapa à nossa percepção justamente porque está diante dos nossos olhos o tempo inteiro). Há muito tempo eu fiz cursinho pré-vestibular num curso no Relógio de São Pedro. E à noite. As aulas terminavam mais de 22h e eu tinha que ir à estação da Lapa pra voltar pra casa. Não raras vezes o ônibus demorava mais de uma hora pra chegar. Não havia smartphones, apenas as baratas e ratos da estação da Lapa e eventualmente algum providencial livro emprestado na biblioteca. De resto, sobravam somente o tédio e a monotonia com as quais qualquer passageiro de ônibus de Salvador estava acostumado. Mas não era só isso. A verdade é que apesar dessa espera rotineira, cansativa e da qual naturalmente eu me queixava, havia algo mais. Algo que, depois de tanto tempo, eu posso dizer: foi o que ficou. Vir da Lapa até a Boca do Rio, de noite, numa Salvador anterior à lamentável explosão de crescimento dos carros (pré-2007) era uma experiência diária de prazer e deslumbramento. O ônibus descia a Avenida Centenário e a partir do Shopping Barra vinha todo o percurso pela orla. Não havia engarrafamentos, nem muitos passageiros. Não apenas porque eram bons e saudosos tempos, mas também pelo horário. Às vezes circulávamos pra lá das 23h. Eu elegia o melhor assento — na janela, claro — e passava a viagem inteira sendo bombardeado pela brisa da orla acelerada pelo movimento do ônibus. Eu lhes digo isso como alguém que sabe, hoje, mais do que nunca, o prazer que pode ser fruir de uma simples nesga de sol. E eram assim todos os dias. O aburrimiento (como dizem os espanhóis: me veio na cabeça assim e eu deixo assim) das aulas, o cansaço da espera e do dia eram simplesmente apagados por aquele cheiro do mar que invadia meu peito com a violência do vento que corria forte, porque o motorista andava rápido pelas ruas vazias. O vento não era frio, tampouco era quente. Nenhuma das duas palavras encaixa. Ele era apenas agradável, reconfortante e tranquilizador. Sabe-se lá quantos pensamentos loucos passaram na minha cabeça nesse trajeto. Quantos planos, quantas ideias e aspirações. O caso é que ali, sentado na janela do ônibus que vinha até a Boca do Rio eu me perdia em pensamentos embalado deliciosamente por aquela temperatura agradável e por aquele vento quase familiar.

Pensando nisso eu lembrei também de algo similar. Da nossa (ou da minha, se for o caso) relação com o mar. Bem, a universalidade das nossas pretensões (políticas, sociais, racionais) muito frequentemente apaga a constelação de diferenças que existem mesmo entre pessoas imensamente afins. Digo isso porque a nossa relação com a natureza marca um universo inteiro de experiências e relações que muita gente em outras partes do mundo não conhece ou não entende. Eu mesmo, durante bons anos (vá lá, talvez meses, a essa altura nada é preciso na minha memória), tive o costume de ir andar ou correr na praia. Ora pela manhã ou início da tarde, ora pela noite. E lembro que, às vezes, quando o dia estava muito quente, andar, correr ou se exercitar na praia e em seguida tomar um banho no mar era uma experiência ressignificadora. Eu lhes digo: eu me sentia outra pessoa, com outra disposição. É claro que o sol é a fonte principal de vitamina D — e a ausência dela no organismo pode causar indisposição até psicológica, mas não se trata de encontrar explicações. O fato é que aquele banho que cortava um calor forte, mas perfeitamente suportável quando se gozava do privilégio de estar perto do mar e poder frequentá-lo me tornava outra pessoa. Do mesmo modo eu me sentia quando, anos depois, morando já no Garcia, nós íamos ao final da tarde tomar banho na água quente no Porto da Barra. A água quente, o sol se pondo — eu até escrevi sobre o melhor evento que eu já presenciei em Salvador, lá no Porto, o Espicha Verão — são elementos e testemunhas de que a natureza, para quem não se fecha nos artifícios do concreto, tem papel formativo na cabeça das pessoas. Ainda que só hoje eu possa dizer, reconhecer e expressar a dimensão dessas experiências em minha vida, dar-lhes o tamanho devido, já então elas tinham intuitivamente toda a importância que agora eu comunico. As viagens de ônibus e os banhos de mar me ensinaram mais do que a maioria dos livros que eu tive que ler. É incrível a quantidade de coisas que a gente pode aprender longe das fontes oficiais de aprendizado, quando estamos prestando atenção.

PS. Escrevi pelo menos mais dois outros posts sobre viagens de ônibus. Um perfeitamente legível e até recomendável, e outro que pode ser lido depois de um esforço para superar os primeiros parágrafos, mas que talvez tenha suas compensações.

Brasil: entre golpistas e irresponsáveis

A situação do Brasil é mesmo delicada. De um lado, a tentativa de organização de um movimento que, receio ter que concordar com os governistas mais empedernidos, ressente a golpismo. A despeito das exceções, o movimento reflete a infantilidade política de um país no qual as instituições são apenas fachadas que dão ares de legitimidade à vontade dos atores cujo poder determinam ou pretendem determinar o destino do país (isso vale tanto pra ilustrar o ímpeto civil representado por esse movimento como também para explicar as ações governamentais). A mais-que-legítima inconformidade com os rumos do país ganha a feição de um reivindicação sintomática na qual o que se expressa é a inconformidade com o próprio resultado democrático. “Dilma de novo? não é possível que esses idiotas não vejam a cagada que fizerem”, dizem eles. Democracia sim, desde que vença meu candidato. A birra de criança assim manifesta é uma das representações da imagem que certos brasileiros fazem de si — e do outro. “Eu, profissional formado, trabalhador, pagador de impostos — dizem eles — sei bem o que é o melhor pro país, mas meu voto vale tanto quanto o de um desempregado analfabeto, que insiste em não enxergar o que qualquer pessoa minimamente instruída identificaria sem dificuldades”. O que se exibe nesses movimentos é a presunção bem própria do bacharelismo brasileiro, as múltiplas facetas da obra da escravidão que nunca soubemos apagar das nossas ações. A certeza de que, a outorga de certos títulos, a posse de certos bens ou até a relação com certas pessoas concedem a alguns juízos superiores aos de outros. No entanto, essas pessoas, pouco afeitas à democracia, embora plenas de razões para chancelar como melhores suas próprias escolhas, talvez não contem com o fato de que nossas instituições tem se fortalecido nas últimas décadas. Por maior que seja o empenho, o aporte financeiro e o vontade de dar ânimo ao movimento por parte de atores e setores os mais diversos, a estrutural institucional do país já não é tão frágil a ponto de se deixar levar pelas fantasias de grandeza autocrática de certos grupos. E a democracia, com todos os seus prós e contras, seguirá, apesar deles.

Por outro lado, um grupo de irresponsáveis que até bem pouco tempo enfrentavam qualquer crítica (à esquerda) brandindo a realpolitik como uma espécie de palavra-mágica. Como se não houvesse alternativa senão jogar o jogo e como se esse fosse o único caminho. Agora, de repente, esse grupo passou a observar que o problema político do Brasil é “estrutural”. Quer dizer, se aceita o jogo e se joga conforme as regras, reputando como ingênuo quem quer que não concorde com elas (não fazemos o jogo, dizem eles), quando então os resultados inevitáveis aparecem, deixam de ser responsáveis pelas escolhas que fizeram e se tornam uma estranha espécie de vítima, tragadas pela inevitabilidade do jogo. Tudo está errado nessa análise conveniente. O PT sim foi responsável, não apenas por ter assentido ao jogo, mas por ter planificado o próprio espaço do debate, reduzindo os espaços e rotulando tudo que fugisse à lógica binária que lhe convinha. Mas o PT foi responsável, sobretudo, pela enorme inépcia com que, nos 12 anos de governo, tratou a educação. O partido repetiu o que foi feito em toda a história da nossa República, pensou a educação apenas como instrumento econômico e social, como engrenagem provedora de material humano necessário à economia. Esqueceu nada menos que a dimensão de cidadania que é própria à educação e, com isso, solidarizou-se com as radicalizações oportunamente manipuladas por marketeiros em tempos de eleição, mas que não podem oferecer terreno a um debate maduro. Se agora se vê acuado por uma parcela da população que vê sua voz amplificada não apenas por uma insatisfação difusa, mas também por interesses de grupos bem conhecidos, é porque também não soube, nesse longo período no poder, trabalhar para qualificar o debate político através da formação de uma juventude mais crítica, menos sujeita ao sempre sedutor apelo das simplificações.

O que a infantilização política alimentada por esse enorme descaso com a educação produz, nenhuma reforma política pode desfazer. Discutam o que quiserem os cientistas políticos. Nenhuma das mudanças imaginadas para o país se realizará enquanto não estiver consorciada ao enfrentamento rigoroso e definitivo dos nossos problemas educacionais. Todas as medidas serão apenas paliativos que ensejarão os muitos debates vazios, o academicismo estéril que o Brasil produz em abundância. Sem dúvidas, muitas mudanças estruturais podem contribuir, mas nenhuma bastará enquanto estivermos marcados pelo estigma de um país cuja primeira Universidade nasceu pela necessidade de outorgar um título honoris causa a uma autoridade estrangeira, ou de uma República que demorou mais de 120 anos para criar um ministério exclusivamente dedicado à educação.

A falência do ensino fundamental, público e privado

Difícil encontrar quem discorde da afirmação de que a educação pública fundamental no Brasil está falida. Daí se segue a constatação de que a estrutura material das escolas em geral está sucateada, os professores desestimulados pelos baixos salários, os planos pedagógicos, ultrapassados, não fazem frente a uma realidade para a qual não foram preparados, entre outras coisas. Diante disso, pode-se pensar que a educação fundamental oferecida nas escolas privadas escapa do diagnóstico inicial. Grande equívoco. Por certo, parte das escolas particulares oferece condições notoriamente melhores que as escolas públicas, além de remunerar melhor seus professores — o que produz, por consequência, um estímulo ao trabalho. Mas a pergunta que revela o nivelamento e a precariedade compartilhada entre os dois tipos de escolas é elementar: para que os alunos dessas escolas são preparados? A resposta é simples: para o vestibular.

O ensino fundamental no Brasil reflete nossa realidade, ele é inteiramente projetado para pré-formar indivíduos que no futuro serão profissionais. E não se trata de pensar aqui uma crítica radical ao sistema de educação em massa, nos moldes de Ivan Ilich, uma crítica que denuncia a incapacidade sistêmica de modelos universais para formar valores, para estimular a autonomia e as singularidades de cada sujeito. Trata-se, isso sim, de observar que os princípios educacionais que orientam o ensino nessas escolas são incapazes de formar para a cidadania, insuficientes para fazer nascer nos jovens uma concepção política da sua relação com a sociedade, e que se posicionam frente aos desafios postos pela necessidade de aceitar a diferença.

No Brasil, uma escola é avaliada quase exclusivamente pela sua capacidade de colocar seus alunos dentro das grandes Universidades. Todas os outros critérios são secundários e dispensáveis se não vierem acompanhados de altos índices de aprovação. Obviamente, não é desimportante um critério geral técnico de domínio instrumental de conhecimentos, mas uma educação não pode se reduzir a isso sem tristes consequências sociais. Um aluno dificilmente sabe mais sobre a História da Bahia (ou sobre o Samba de roda do recôncavo, para dar um exemplo preciso) porque estuda numa escola particular e não numa escola pública (a precariedade é generalizada quando se trata de pensar a educação em qualquer dimensão não técnica). Onde impera uma visão instrumental da educação, valor e utilidade se confundem, tornando dispensável tudo que não estiver encaixado no programa de conteúdos exigido pelo vestibular.

O resultado disso é uma cidadania idiossincrática, resultante não do esforço sistemático em forjá-la conjuntamente ao treinamento instrumental, mas mero produto circunstancial — e por que não dizer, acidental — de fatores e contextos favoráveis, que uns podem ter a sorte de encontrar, mas que a maioria não tem. Podemos seguramente compreender como esse tipo de educação forma parte de um sistema econômico, se enquadra no plano de exigências que precisamos cumprir para aprimorar nossa economia, diversificá-la, fortalecê-la. Mas como uma educação assim pode fazer frente a problema muito particulares da nossa sociedade, como o preconceito, o racismo, a desigualidade, o bacharelismo que resulta de tudo isso? Não pode.

Nossa sociedade está desarmada para enfrentar esses problemas e a fé cega na economia como panaceia para todos nossos males impede que enxerguemos a necessidade de contorná-los apostando numa educação não estritamente instrumental, que incorpore valor e não apenas utilidade na grade de conteúdos e nas práticas pedagógicas. A fé cega no poder libertador do mercado impulsiona índices massivos de investimento em educação técnica e superior, em comparação ao tímido e minguado investimento em educação fundamental. A restruturação mais que urgente do nosso ensino básico vive apenas nos sonhos de quem gostaria de viver num país mais igual, não apenas sob o ponto de vista econômico, mas social.

Essa, aliás, é uma das grandes críticas que se pode fazer ao governo federal do PT (a despeito dos méritos que se pode apontar ao governo, que não anulam essa crítica). Volta e meia me volta à cabeça uma frase de, imaginem só, Fernando Henrique Cardoso (e que talvez eu já tenha citado aqui), enunciada numa entrevista, salvo engano, à revista Piauí: “o mercado cria lucro, não valores”. Essa lição não foi aprendida nem por ele, nem pelos que o sucederam.


O sistema de cotas é uma declaração de que não se consegue formar jovens negros (e pobres) nem dentro do marco de uma educação dirigida por necessidades de mercado. Por não conseguir isso, é preciso um sistema que equilibre as oportunidades de sorte que não resulte do desequilíbrio notório entre escolas públicas e privadas a manutenção de uma desigualdade econômica. É preciso oferecer acesso à Universidade como oportunidade de ascensão econômica. E isso significa que a própria Universidade, na ausência de uma formação sólida, é convertida num mero instrumento. Enquanto as deficiências da formação básica não forem enfrentadas, continuará a ser negada a jovens negros uma educação de qualidade, apesar da compensação oferecida pelas cotas. Eu confesso envergonhado que já fui contra as cotas e, apesar de ter apagado a maioria dos posts em que defendia minha antiga posição, continuo achando que a imagem de um braço torto engessado reflete com fidelidade as contradições expressas nas tímidas políticas para educação básica e as travas que elas impõem à luta por mais justiça social.