Reflexões sobre futebol: a tese do primado do futebol “competitivo” é uma furada

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Cruyff declarou que não pagaria para ver o Brasil jogar, pois “quando se fala em Brasil, penso em jogadores como Gerson, Tostão, Falcão, Zico, Sócrates… agora, o Brasil tem o contrário, Gilberto Silva, Felipe Melo, Michel Bastos, Julio Batista”. Surpreendentemente, Dunga e seus asseclas pareceram incomodados. Ora, Cruyff não disse nada além de platitudes. Dunga não é o profeta do futebol “competitivo”? Não assumiu abertamente o gosto pelo futebol de resultados, tornando acessório o jogo bonito e bem jogado? À imprensa Dunga tergiversou dizendo que Cruyff certamente receberia ingressos de graça da Fifa e por isso não pagaria.

Se ele é tão confiante em seu modelo de jogo, por que se ressente desse tipo de comentário? Não é a crítica que o atinge, é a verdade posta à luz. Dunga defende um jogo feio, mas que se sustenta pela eficiência, pelos resultados. Pra isso, implantou um regime militar na seleção, os próprios jogadores parecem soldados: sujeitos apáticos, completamente desprovidos de vontade própria e dispostos a tudo para executar as tarefas designadas. Não há nada de errado com a disciplina, mas personalidade sempre foi a marca do nosso futebol. É isso o que Cruyff tem em mente quando diz que Dunga transformou o Brasil num time como outro qualquer. O que Cruyff quer dizer — algo, aliás, inacessível à mente de algumas pessoas — é que a tradição de vitórias caracteriza nossa história, mas o que nos distingue propriamente é certa maneira de jogar futebol, uma personalidade completamente anulada pelo esquema de Dunga, personalidade que, uma vez bloqueada, nos torna iguais aos outros times (ainda que sejamos mais eficientes e vitoriosos).

Se Itália tivesse cinco títulos mundiais, teríamos o mesmo futebol? Absolutamente! No entanto, a Itália está muito mais próxima do futebol alemão do que nós (e nós mais próximos dos argentinos). Os resultados, isolados, ainda não dizem nada sobre o nosso modo de jogar. E mesmo que a Itália ou Alemanha possuissem um ou dois títulos a mais, ainda sim, a mística envolvendo o futebol brasileiro persistiria (assim como uma certa mística envolve o futebol argentino, ainda que eles não sejam tão vitoriosos quando outras seleções).

Será que é tão difícil entender que o resultado não pode ser o único critério? Vamos por outra via. Alguns dizem: o futebol mudou. E então outros se aproveitam de comentários semelhantes para fundamentar a ideia de que o futebol de hoje não se ajusta ao estilo de futebol do passado. Mas só por série tortura de equívocos esse tipo de opinião prevalece, vejamos quais sejam eles: (1) o reconhecimento de mudanças históricas no futebol (sejam elas quais forem) é uma coisa, (2) outra coisa é tornar essa identificação o fundamento da tese de que um certo modo de jogar não é adequado aos novos tempos. Futebol não é teoria, embora ele possa ser história. Nenhuma determinação teórica (reconhecimento da eficiência de novos padrões táticos, novos modelos de preparação física, etc) pode definir que tipo de jogo será ou não vitorioso. Há, por certo, muitos fatores controláveis — e o avanço da ciência contribui para o domínio de certos aspectos envolvido no jogo — mas há inúmeras variáveis fora de controle, o que nos leva de volta ao nosso comandante. O que incomoda Dunga não é nem mesmo a verdade endossada de que seu time dispensa o jogo bonito em favor do futebol de resultados, é que por trás dessa verdade está oculta a sua colossal limitação técnica, ou seja, é preciso vender a idéia de que o futebol não se ajusta mais à arte antes identificada ao nosso jogo a fim de mascarar por esse meio a profunda incompetência e covardia que é o signo do nosso capitão. Incompetência para extrair o melhor de uma geração de jogadores brilhantes, estigmatizados por derrotas e performances pífias, além de confusões extra campo. Covardia para ousar, para admitir a possibilidade da derrota sem medos e sem se apequenar.

Por outro lado, precisamos reconhecer, o próprio Dunga foi estigmatizado e hoje a ele não resta outra opção senão ganhar, senão redimir sua geração e a si mesmo. E então chegamos por fim aos verdadeiros culpados: Ricardo Teixeira e a corja de maus gestores instalados em todas as camadas da administração do nosso futebol. É incrível, mas o futebol brasileiro ainda é amador, administrado por interesses políticos escusos (quando não por interesses financeiros obscuros), guiado por politicagens, favorecimentos, desejo de poder e controle que o mutilam e deformam. Com a seleção brasileira não poderia ser diferente.

Por fim, o que nos distingue não é a eficiência. Durante muito tempo os resultados foram uma consequência do nosso jogo bonito, bem jogado. E mesmo quando não ganhamos, fomos e somos reconhecidos — como em 82. Agora, de repente, constrói-se a teoria de um futebol que não mais premia a arte e a técnica, e do passado extrai-se a consequência de que as mudanças inviabilizaram certos estilos de jogos, como se o passado não nos tivesse ensinado também que todas as nossas vitórias, que a identidade mesma do nosso futebol, foram antes um efeito desse estilo agora ameaçado. Parece que cada um tira do passado as lições que bem entende.

O que impede que o futebol bonito resurja e prevaleça não é nenhuma limitação caraterística do futebol atual, mas a falta de coragem de ousar, arriscar, de assumir a possibilidade da derrota como uma opção legítima. O futebol, se pensarmos bem, reflete o estreitamento das nossas próprias mentalidades, aprisionadas pelo desejo de segurança e controle que nos paralisa diante de tudo que ameaça e desestabiliza — como se vida fosse feita apenas de vitórias, alegrias e felicidade. Só vence com dignidade quem aceita perder.

PS. Poderíamos também ressaltar que o acanhamento do futebol brasileiro já vem de algum tempo e recebeu um duro golpe na Copa de 2006 (Dunga não é pioneiro nesse estilo). Mas continuamos produzindo grandes craques. Não há porque retroceder.

2 comentários

  • Apoiado, Leonardo. E evidência de tudo o que você disse é o futebol que tem sido apresentado pela fresca e franca seleção da Alemanha, pelo menos nos seus melhores momentos e em comparação com as demais. Me chama a atenção também que times como Holanda e Argentina se transfigurem ao avançar no placar e passem a administrar o resultado num irreconhecível lance de mediocridade vez por outra interrompido por jogadas acidentais, quase sempre nascidas de um erro ou da exposição inevitável do adversário – se bem que Portugal nem perdendo reagiu -. Parece que até o futebol está acovardado; se pensarmos que ele é uma arte, faz sentido…

  • É, João, os resultados recentes parecem testemunhar uma mudança de valores, hein?

    Como dizem os espanhóis, nós pegamos um vírus em 94, depois de 24 anos de jejum. Espero que tenhamos nos curado dele nessa sexta!

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