Os manuais de democracia destacam com ênfase quase enfastiante a importância da pluralidade e da defesa incondicional da liberdade de pensamento. O mote voltaireano da preservação do direito à expressão de ideias, mesmo quando diretamente opostas às nossas, ganha destaque especial. Mas essa superexposição oculta aspectos igualmente fundamentais e outras questões de princípio. Há um pressuposto que está na base dessa defesa e cuja incompreensão faz de todo ferrenho defensor da democracia um mero papagaio bem adestrado. A pressuposição é de que o debate de ideias e a constituição de um espaço público livre e sem coerções concorrem para o desenvolvimento de melhores recursos para lidar com os desafios políticos e com os problemas sociais. O debate filtra e seleciona as melhores opções.
Isso significa que outros elementos têm papel tão importante quanto a pluralidade nessa estrutura que permite à democracia atingir seus objetivos. A democracia deve ser, antes de mais nada, um movimento dialógico ou, por que não, dialético. Ou seja, no lastro democrático a pluralidade deve andar de mãos dadas com a disposição para aceitar a possibilidade de que a ideias do Outro sejam verdadeiras (ou melhores). No prefácio da Nova Retórica, de Perelman (prefaciado por Ulhoa Coelho, mas considerem também a possibilidade de que essa observação seja de Perelman, já que não se pode confiar na minha memória), diz-se com muita razão que o lugar para ideias absolutas, necessárias e atemporais é a Igreja e instituições semelhantes (a matemática e lógica trabalham com necessidade e certeza, mas elas não são absolutais e intocáveis, embora alguns defendam essa posição). Lugares onde o diferente está “errado” por determinações a priori, que abortam, portanto, a possibilidade do diálogo e de novas ideias e valores. A condição do exercício democrático é a aceitação do caráter contingente das nossas próprias soluções, em favor de uma disposição na qual o outro pode oferecer melhores alternativas.
Na Grécia, a primazia desse espírito público e dialógico estava manifesto no próprio modelo de deliberação e participação. Os sofistas ali cumpriam o papel fundamental de instruir e formar os participantes das discussões políticas. Esse espírito político era alimentado pelo entendimento da importância da retórica, da boa expressão dos pensamentos, enfim, de um comportamento voltado ou que tem como pilar a consideração da presença do Outro.
Mas é Chantal Mouffe, em O regresso do político, quem cunha com precisão as ideias que dirigem meu texto, ela diz: “a ordem democrática pluralista baseia-se na distinção entre ‘inimigo’ e ‘adversário'”.
Portanto, o que me parece um desafio à nossa democracia — um desafio seguramente difícil, em razão das constantes impressões que tenho na internet, nos blogs, no Twitter –, é a superação dessa confusão entre adversários e inimigos. É verdade que os expedientes de parte da nossa imprensa, de tão sujos, tornam quase inevitável uma censura moral que transforma o mero adversário em inimigo, mas não podemos deixar que esse espírito contamine e solape as condições para o desenvolvimento da nossa democracia. Não se pode deixar amargurar. Além do que, e apesar disso, essa aversão de princípio à contrariedade e à diferença de ideias é também largamente localizada nos mais diversos espaços da geografia ideológica. Não se limita à nossa direita rancorosa. E é por isso que é preciso entender que a pluralidade deve ser acompanhada de perto por essa disposição ao debate e à aceitação das diferenças ideológicas, e pela abertura à possibilidade lógica de estar errado, pois aqueles que professam suas opiniões, valores e ideias absolutamente, como se elas fossem revelações e dogmas divinos, representam um perigo oculto e um entrave mascarado pela sombra da pluralidade. Esse comportamento é tão ameaçador à democracia quanto as ações de ditadores e de tantos outros falsos democratas.