O moralista Tarantino

O
Coronel Hans Landa

Spoilers: não leia a menos que já tenha assistido Bastardos Inglórios.

O novo filme de Tarantino é seguramente interessante, embora, talvez, supervalorizado. Queiram ou não, Brad Pitt mais uma vez é uma das figuras centrais e, mais uma vez, atuando com bastante competência. Quando ele diz buongiorno ao coronel Landa, naquele indisfarçável sotaque caipira, eu quase tive uma sincope. Mas Christoph Waltz rouba a cena, é sem dúvida o melhor ator do filme, encarnando o personagem mais elaborado. O que me faz pensar que Bastardos Inglórios balança em sua pretensão é exatamente o modo como ele trata seu melhor personagem.

Uma comparação talvez esclareça as coisas, uma comparação, aliás, nada inocente. É a minha velha mania de confrontar as soluções cinematográficas às soluções literárias. Diante do cinismo do Coronel Landa, de seu jeito aparantemente cortês, ou melhor, da mão de verniz que mal dissimula — pois não o pretende — suas intenções e seu poder, lembrei imediatamente do investigador Porfiri, de Crime e Castigo. A cena inicial lembra terrivelmente os encontros de Raskólnikov, o sentimento crescente que ia se apoderando de Rodia a medida que aprofundavam a conversa. “Ele sabe!” pensava. O terror de pensar que alguém sabe o ilícito cometido só se compara à angústia de não ter certeza, e é desse cenário que os personagens, tanto no filme quanto no livro, retiram sua força. Eles articulam de um jeito quase doentio a incerteza que vai crescendo no coração de seus interlocutores, fazem disso um jogo no qual a confissão pode vir a cada nova palavra, num gesto trivial, traídos por alguma negligência. Os algozes, esses nunca erram. Seus discursos soam como se estivessem há muito prontos e se revestem de uma artificialidade quase grosseira, como se no final das contas não quisessem mesmo disfarçar. Em Crime e Castigo, Porfiri é certamente o personagem mais inteligente. Raskólnikov é o veículo da trama, decerto inteligente, mas se sua inteligência não estivesse à deriva, em busca de um porto, não teria inspirado as ideias centrais da narrativa. Ródia é inteligente, mas sua insipiência é flagrante — e tinha que ser. Porfiri, ao contrário. Difícil simpatizar com uma espécie de burocrata, ou imaginar que a inteligência se instale em alguém de carreira semelhante. Mas a verdade é que eles são altamente especializados, executam seus trabalhos com maestria e o comentário inicial do Coronel Landa acerca de seus próprios expedientes talvez servisse também para ilustrar o lugar de Porfiri.

Porfiri é o Judas da via crucis de Raskólnikov. Um personagem central cuja presença é indispensável. Dostóievski, como gênio que era, manteve-o íntegro. Tarantino, ao inverso, sacrificou seu melhor personagem num desfecho algo moralista. É claro que eu não queria que o nazismo vencesse, mas Landa deveria ter caído pela mão dos outros, e não ter se exposto pelas suas próprias ações. Se o cinismo era odiável, a perspicácia com que fazia todos os personagens curvarem-se à sua vontade era fascinante. A aversão a Landa já triunfava quando eu constatei com algum pesar, logo após ele ter matado a atriz Bridget von Hammersmark, que um final ao estilo “receba o que você merece” já não poderia ser o caso. Mas foi isso o que Tarantino fez. Por essa e outras coisas o arremate me pareceu uma enorme injustiça e uma imperdoável descontinuidade. Tarantino construiu um personagem a maneira de Dostóievski, mas acabou por inseri-lo num contexto sutilmente moralizante (ao modo de Saramago). É como se os personagens não tivessem independência e tudo pudesse ser subordinado ao propósito central de consumar a vingança judaica. Mesmo ao preço da ruptura e incoerência. A vingança de Shosanna talvez tivesse bastado. Claro, a cena final é totalmente cabida e mesmo redentora. Mas Aldo é um personagem grosseiro e pouco inteligente, um final semelhante poderia ter se realizado sem que pra isso fosse preciso envolver Landa numa negociata apressada, irrefletida e de consequências mais que previsíveis. A surpresa do coronel diante da morte de seu soldado pelas mãos do Apache é um atentado contra a inteligência minuciosamente construída ao longo do filme. Pareceu mera ocasião para o final “o bem derrota o mal”, mesmo que mascarado pelo quê de humor em que a situação se embrulha.

Coerência num filme, como num livro, é tudo. Ao meu ver, a grandiosidade de um autor se mede em sua capacidade de arcar com as consequências de seus próprios engenhos. Um nazista livre de punição talvez não fosse conveniente ao painel de nossos valores e desejos, mas algo muito próximo era o que se deveria esperar de uma trama relativamente coerente. É excessivo aproximar Tarantino e Dostóieski, vocês devem ter pensado desde o início, a lembrança de Porfiri talvez tenha me traído. É que o russo me acostumou mal ao sentido de integridade capaz de fazer o próprio Cristo penar nas mãos de seus pretensos representantes, e depois ser piedosamente liberado qual um indigente a quem se dirige migalhas de compaixão (vide Irmãos Karamazov, em O grande inquisitor). O mau costume da literatura frequentemente sabota minha experiência com o cinema. Não é nenhum defeito próprio do cinema, é que o público, a audiência, parece uma variável excessivamente considerada na elaboração dos roteiros cinematográficos.

O Urso e Apache

PS. O Apache não é judeu, e se é, não é puro. Portanto não dá pra considerar que Tarantino inverteu os papéis, mostrando judeus tratantes e nazistas civilizados. Até porque seria apressado levar a imagem de personagens em particular até uma regra geral. E igualmente difícil fazer a pecha de civilizado aderir à imagem de gente que pratica assassinatos.

Atualização – Vejam o erro que eu flagro no texto, depois de tê-lo lido quinhentas vezes: “é sempre dúvida o melhor ator do filme”. Espero que as consequências desse sei-lá-o-quê que me causa lapsos desse gênero sejam toleráveis.

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