Para Marcuse é uma contradição que uma sociedade rica e detendora de um poderoso aparato tecnológico não seja capaz de reduzir a níveis aceitáveis o sem número de mazelas que aflige a maioria da população mundial. A combinação de inspiração freudiana e hegelianismo faz o pensamento de Marcuse reputar como irracional uma organização social que não contempla os princípios que arranjaram originariamente a civilização e que não realiza o propósito pela qual ela foi criada de trabalhar em função dos seus membros, livrando-os das ameaças.
Mas esse post é uma continuidade do anterior. O que eu quero saber é: por mais razoável que pareçam os argumentos de Marcuse, em medida eles são capazes de constranger alguém a aceitá-los, a aceitar sua conclusão?
Será que a linguagem tem alguma dimensão além da política? Isto é, quando formulamos novas ideias, discutimos e as tornamos públicas, cremos efetivamente que um filtro racional irá selecionar o que persiste e o que fenece?
Como evitar a impressão de que as atividades intelectuais são simples performances que dissimulam os fatores que realmente importam para determinar as escolhas sobre o que é correto, justo e adequado — fatores que passam ao largo de noções como coerência, consistência e variantes. Mas talvez eu esteja preso a um conceito de racional demasiadamente estreito. O que eu quero dizer é: será que o critério empregado para selecionar ideias, por exemplo, se orienta por padrões de coerência, consistência, logicidade? Ou tais conceitos são como véus, manipulados para esconder os fatores verdadeiramente determinantes?
Há uma outra perspectiva bastante razoável: talvez existam muitas visões de mundo carregando princípios incompatíveis, de sorte a incomensurabilidade entre elas é o que faz fracassar o diálogo. O fracasso não se faz evitende em razão de resíduos iluministas (e de muitas outras tradições de pensamento anteriores) que ainda se conservam fortes na crença de que há algo de universal no nosso espírito. Nós insistimos em dialogar como um inseto que investe contra o vidro transparente por não enxergá-lo.
As escolhas que fazemos em nossa vida pessoal, como as escolhas que dirigem o domínio público e social, são resultado do triunfo de ideias coerentes sobre ideias mais fragéis? Se o que determina a seleção de ideias nos dois domínios não é algo que podemos reconhecer como racional, como evitar a constatação de que o diálogo é uma mera encenação que recobre forças de outra ordem que estão atuando nos debates públicos? Como escapaz à sensação de que a vida por isso toma um curso arbitrário e incontrolado?
Mas nenhuma noção de racionalidade está dada. As escolhas que alguém julga racionais podem bem parecer irracionais a outros. Estamos sempre às voltas com a incomensurabilidade. Se é assim, como podemos superá-la e promover um diálogo que resulte no controle, no domínio das nossas próprias escolhas? Se não podemos pressupor uma Razão Universal a costurar o conjunto heterogêneo de ideias que os homens sustentam, como garantir que o diálogo seja possível?
Se não há diálogo e se a comunicação entre diferentes visões de mundo não se determina pela força e coerência das ideias apresentadas, mas pela mobilização de fatores que dissimulam a incomensurabilidade entre elas, o caminho da História é errante e ininteligível. Isso porque ela se organiza sobre uma base que não existe, sobre acordos que são meramente encenados.
Como nas primeiras formas de falsificacionismo, para que um diálogo possa acontecer, talvez seja preciso definir antecipadamente que circunstância seria capaz de levar os interlocutores a abandonar suas posições. Pensem, por exemplo: que situação faria um liberal empedernido crer que a aparente incompatibilidade entre a riqueza e tecnologia acumuladas pela humanidade e o predomínio da pobreza e sofrimento no mundo é resultado da adoção de um modelo político e econômico inviável? O que impede que ele recorra infinitamente a novos expedientes para transformar esse cenário incontornável num mero acidente, incapaz de depor em definitivo contra seu modelo?
(Que tipo de fato social constituiria uma prova irrefutável contra um determinado modelo? [pensem na tentativa de Marcuse de fazer da discrepância entre riqueza e sofrimento uma prova contra a sociedade repressiva capitalista]. Se essa demonstração não pode acontecer, como sair do círculo em que a discussão entre as duas partes pode adentrar?)
O que impede que os debates humanos, em dimensões micro e macro, se confundam com essa ciranda infinita, insuperável e sem fundamento para a qual tudo é valido porque não há pontos em que se possa apoiar um golpe definitivo e inescapável? (a falta um ponto de Arquimedes).
Se mesmo os Direitos Humanos não são um ponto comum, é difícil pensar um cenário positivo.
As pessoas estão de acordo que 2+2=4, será que algum dia domínios exteriores à matemática terão uma espécie de força coerciva semelhante à necessidade matemática? Seremos capazes de promover na política uma aceitação tão maciça quanto a aceitação aos princípios matemáticos? Disso depende a “racionalidade”, o controle e o destino da empresa humana — a História.
Por fim, a retórica parece muito mais importante que a lógica no trato com as coisas humanas. Precisamos mais de manipuladores de bom caráter do que de gênios.