Cultura, mercado e valores

C
Resposta a uma réplica de Bruno Garschagen, publicada em seu blog. A fim de que o debate permaneça pontual, me servirei do mesmo recurso à letra da resposta, esclarecendo minhas idéias a medida em que as contraponho às dele.

Independente de uma discussão sobre o mercado, não reconheço esse “estabelecimento explícito de critérios de valor a serem preservados”. Assim como não reconheço esse déficit que você cita desde a primeira mensagem. E se não reconheço esse déficit, e achei ter deixado claro isso no primeiro post que fiz, não há base para avançarmos nessa discussão.
(…) Há um outro problema. Você citou o tal desequilíbrio, mas não o explicou.

Curioso que uma frase recentemente lida numa matéria da revista Piauí que me foi sugerida e cunhada por FHC venha me auxiliar agora:

Hoje, só o mercado produz coesão. Mas o mercado é bom para produzir lucros, não valores

Ao que acrescento: os valores produzidos pelo mercado são o espólio circunstancial de sua atividade primária, a produção de lucros. À lógica mercantil não interessa o domínio moral ou valorativo, apenas a observação rigorosa de sua sintaxe. Os valores culturais não podem ser reféns de uma atividade que não os reconhece como significativos. Aliás, escrevi um texto precário embora ilustrativo sobre Responsabilidade social e essa idéia não é outra coisa senão a evidência cabal dos recursos de que se serve o mercado e de como o valor é sutilmente coordenado num jogo no qual ele é apenas uma peça de importância relativa aos fins que visa: a captação de recursos do capital financeiro.

Demanda e oferta prescrevem uma severa condição de existência: sobrevivem a mercadoria e o valor que conservarem nichos de mercado suficientes para equilibrar a balança entre custos e benefícios, oferecendo uma inclinação para os benefícios bastante para se extrair algum lucro. E todo valor neste domínio se restringe a uma bondosa tolerância para com pequenas margens de lucro. Nenhuma cultura deve aceitar que a lógica de mercado articule a integridade da produção cultural, sob pena de ver seus valores esvairem-se nas flutuações inerentes à dinâmica desse domínio.

Não acho natural que sejam estabelecidas medidas protecionistas para nada, seja na esfera econômica ou cultural. Acho abjeto qualquer tipo de protecionismo. Trata-se de uma anomalia em qualquer esfera.

O protecionismo é uma ferramenta eficiente quando se quer resguardar um mercado interno da pujança do mercado externo. Grande parte das economias do mundo empregam práticas protecionistas, embora conservem entre elas diferenças de grau e alcance quanto a essas práticas. O Brasil não é diferente. O protecionismo não só não é uma anomalia, como é indispensável para manutenção de certos setores da economia. É evidente que a disposição para flexibilizar os níveis de proteção deve ser estimulada, pois como você observa, Bruno, nos EUA subsídios para o setor de algodão obstruem a entrada de produtos externos e nos prejudicam em particular. Mas ora, por isso o protecionismo é anómalo? Porque ele reconhece que uma certa proporção entre o mercado interno e externo deve ser mantido para que se conserve a força do mercado interno e sua função dentro da economia local? Duvido muito que algo dessa natureza possa ser afirmado a menos que nos empenhemos em impor nossos valores. Contudo, seria estranho que ao mesmo tempo mantivéssemos restrinções e altas tarifas de importação quanto a eletro-domésticos da Argentina ou produtos chineses. A reclamação quanto aos subsídios e medidas protecionistas não visa a abolição dessas medidas, mas a flexibilização dos seus termos. A contraproposta é sempre uma compensação à abertura que fere o equilíbrio econômico de um país e por isso deve ser sempre vantajosa pra ambas as partes.

Não se pode deslocar as normas protecionistas da esfera econômica para a cultural sem algumas ressalvas. Todavia, acredito que elas cumprem a mesma função nesse terreno: proteger o mercado interno. Isso é especialmente verdadeiro se admitimos que não se pode ver o mercado “de forma desvinculada às manifestações culturais”. Se imaginamos, por hipótese, que subsídios aos produtores de soja brasileiros mantém esse setor competitivo frente ao robusto mercado de produção argentina, resguardando-os do colapso, por que não tratar da mesma forma a cultura já que não se pode desvinculá-la do seu aspecto mercadológico? Será que nossa cultura e nossos valores são preteríveis a produção de soja ou a de qualquer outro bem? Os valores locais devem ser preservados tanto quanto a economia local, ambos cumprem uma função no complexo quadro de referências no qual se encontram e o enfraquecimento desses dois setores pode custar a fundação da própria estrutura que os suporta. É por essa razão que medidas protecionistas são lançadas.

Ele vê o mercado como algo fora da vida comum. Tomando como base os tempos atuais, vejo como algo que não pode ser visto de forma desvinculada às manifestações culturais. Essa cultura interna de que fala o leitor ela também faz parte do mercado, e de nada adianta a tentativa de tentar deslocá-la.

Não procede, portanto, a afirmação de que enxergo a cultura interna como diferente do mercado. Aliás, esse aspecto esclareço ainda no comentário referido e num fragmento destacado:

A produção cultural interna é mercado. E o mercado sempre existirá.

O que eu faço é uma nota, que não toca a verdade do meu enunciado anterior:

No entanto há cultura “interna” que não está no mercado, que “não é mercado”, e que deveríamos valorizar.

Ou seja, existem elementos da nossa cultural que não são contemplados pela alento mercadológico e no entanto eles deveriam ser preservados. Veja que em nenhum momento eu assumi posição diferente daquela que vê a cultura interna como mercado e mesmo quando eu destaco a necessidade de preservação de elementos e valores que não se enquadram no esquema mercantil é para registrar que sua ameaça de extinção é iminente porque tudo que o mercado preserva, o faz obdecendo não a semântica de valores mas a sintaxe friamente elaborada para guardar apenas o lucro. Ou seja, o mercado faz coincidir o que é valioso com o que é consumido. É essa autonomia do mercado em definir o que tem valor o alvo de minhas críticas desde o início. Não podemos nos furtar à tarefa de estabelecer um painel de valores autônomo, independente dos ditames produtivos, isto porque parece sensato preservar a autonomia e liberdade de definir o que é valioso a despeito de prescrições extrínsicas, parece sensato que alguns valores perseverem ainda que já não atendam às exigências do mercado, pois alguns deles atendem a outras exigências. É preciso que os valores não satisfaçam apenas a operacionalidade do mercado.

Há uma distinção no emprego do conceito de mercado indispensável à compreensão do meu argumento. O mercado nesse domínio cultural refere-se à suficiência produtiva e a sua auto-referência, isto é, a capacidade de criar demandas e satisfazê-las e a alternância cíclica desse processo que se estende ad infinitum, constituindo a totalidade do sistema de criação. Uma mercadoria, portanto, não está necessariamente situada no terreno do mercado, não nasce necessariamente segundo orientação de demandas internas. É por isso que é preciso distinguir entre o que está no mercado e o que escapa a ele, embora possa ser tratado como mercadoria. Há aspectos da cultura interna que são mercadorias mas que não estão no mercado, ou seja, não satisfazem os requisitos para manutenção dessa condição. E condição de estar no mercado é a condição de existência. E existe apenas o que o mercado precisa. É preciso que existam coisas além daquelas estipuladas pelo modo de produção vigente. E para essas coisas é que se destinam os incentivos financeiros.

Permita que eu antecipe um ponto: o caráter controverso da eleição de valores e critérios não serve de pretexto para abandonar o projeto de institui-los. Toda eleição exige renúncias e escolher é a essência da cultura; nem mesmo os terrenos mais axiomáticos da matemática conseguiram se desvencilhar dos longos braços da escolha. Se eu defendo o estabelecimento de critérios de valores pelos quais torna-se possível o emprego de instrumentos de controle e proteção de aspectos arbitrariamente definidos da nossa cultura é porque eu sei que os valores não estão ausentes no processo de eleição conduzido pelo mercado, é exatamente porque não concordo com eles e porque não deveríamos concordar com aquilo que não elegemos através de mecanismos legítimos, diretos ou indiretos, de eleição. Discutir o que deve ser definido como prioritário ou valioso — esse é outro campo de debate que já pressupõe o acordo sobre a sua necessidade.

Notas breves

Você pode até achar que essa expressão não está carregada de valor, mas está. E não é de hoje. Se você queria expressa apenas uma constatação deveria usar uma expressão que não tivesse sido historicamente usada com uma carga valorativa.

A expressão não é carregada de valor porque é usada para descrever uma relação entre os termos a que se refere, preservando sua a duração e as posições entre eles na ordem da relação. Imagine se precisássemos cunhar novas palavras e expressões no intuito de escapar à carga histórica agregada a elas? A expressão adquire sentido no contexto e segundo a função que exerce dentro dele. E aqui ela não exerce função de valor, conforme observei.

Para quê citar jazz e blues? Você não deveria mesmo explicitar algo tão patente. Por qual razão tehta fazê-lo agora?

Se explicitei o que antes julgava não merecê-lo é porque não fui entendido. Citei o jazz e blues para salientar, segundo os próprios elementos mobilizados por alguém nos comentários, que o prejuízo trazido pela cultura estrangeira não é resultado do seu desvalor, mas de um desequilibrio que pode ser entendido analogamente em termos econômicos. Esse desequilibrio não é produzido pela entrada maciça de cultura ruim num universo de cultura boa, mas sim porque qualquer cultura externa que entre maciçamente num determinado domínio ameaça a cultura interna se ela não dispuser de meios para combatê-la em igualdade da condições.

É preciso notar duas etapas distintas que exigem tratamentos diferenciados.
1) A primeira no qual um desequilibrio de natureza econômica ameaça o mercado interno — essa etapa reivindica um tratamento meramente descritivo, por assim dizer, embora a alteração dessa ordem de coisas reclame, como não poderia deixar de ser, uma mudança no quadro de valores, isto é, somente através da admissão do primado da cultura interna como valor é possível modificar o procedimento relativo ao desequilibrio entre mercado externo e interno.
2) A segunda diz respeito a ineficiência do mercado em produzir valores. Esse debate já principia na esteira de valores e tem como pressuposto a idéia de que mercado e cultura tem propósitos diferentes embora tenham se enlaçado de modo quase completamente inseparável.

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