O presidente demorou, mas parece que entendeu, em sua já longa experiência de um mandato e meio de governo, que ao noticiar ou opinar sobre assuntos que não sejam favoráveis aos governos a imprensa não está expressando meras antipatias ou idiossincrasias, em relação a quem quer que seja, mas sim atendendo ao exercício de um direito de cidadania, ou seja, o direito que tem a sociedade de ser informada, muito mais importante do que o direito que tem a imprensa de informar – conforme a lúcida interpretação que a Suprema Corte norte-americana deu, na década de 1970, à Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, berço institucional da liberdade de expressão das democracias do mundo contemporâneo.
Um pouco antes está escrito:
A imprensa foi responsabilizada não só pelo presidente, mas por seus ministros, auxiliares, correligionários e aliados por quase todas as crises, todos os desentrosamentos, equívocos, inoperâncias e o que mais houvesse de negativo no governo e em sua principal força política, o Partido dos Trabalhadores, pelo simples fato de registrar e comentar tudo isso.
Eu costumo dizer: esconde-se melhor a mentira quando apoiada sobre alguma verdade. Se a crítica sistemática à imprensa é equivocada, como quer o Estadão, seu oposto é igualmente equívoco. Se pelo simples registro não se pode acusar alguém de má fé, não se deve, tampouco, imaginar que o mero exercício de uma função indispensável à democracia é o bastante para isentar quem quer que seja de críticas pontuais. A mudança de postura presidencial forneceu a matéria prima necessária para que um álibi fosse construído para respaldar as posturas pouco republicanas que frequentemente se vêem representadas nas páginas de jornais e revistas nacionais.
Demonização, maniqueísmo e simplificação são ardis retóricos, instrumentos políticos, mas raramente meios legítimos de argumentação. Se não se deve condenar apressadamente a imprensa, sem distinguir aqueles que lutam e exercem suas profissões com dignidade e respeito, mesmo discordando das escolhas do governo; não se pode, por outro lado, absolvê-la indiscriminadamente sob alegação de um suposto direito democrático inalienável. Democracia e Direito se fazem com responsabilidade e não raro produzem choques e conflitos que devem ser dissipados no domínio legítimo de suas demarcações. É preciso construir uma visão crítica, pontual, de cada leitura e interpretação registrada. Tão importante quando uma imprensa livre e atuante é um povo emancipado e capaz de interpretar criticamente as notas jornalísticas.
Contudo, não podemos perder de vista a história. O equilíbrio nos conduz à suspensão de juízo e à avaliação particular de cada caso, mas a credibilidade da imprensa está manchada. A mesma imprensa que ecoa o destempero de Gilmar Mendes contra o “Estado Policialesco” — e a favor de Daniel Dantas — deu voz ao espetáculo de prisões, dossiês e fotos na véspera da eleição de 2006. O que incomoda não é a oposição ao governo, mas as diferentes medidas empregadas para considerar fatos semelhantes. Alguém é capaz de afirmar que o caso Alstom permaneceria no ostracismo do qual nunca saiu se fosse capitaneado por grandes figuras do PT? Dizer que a queixa contra a imprensa foi motivada pelo simples registro de fatos é substituir um radicalismo por outro. É o mesmo que trocar o pensamento torto dos que consideram mal intencionada qualquer interpretação que manifeste ideias contrárias pelo extremismo dos que acham que a atividade jornalística é absoluta e ilimitada. A imprensa e o jornalismo não estão acima da lei. Investigar fatos, levantar dados é algo diferente de denunciar e acusar. Quando acusa, a imprensa deve estar preparada para fornecer provas à justiça, ou para pagar pela atitude leviana, caso faltem as provas.
O enviesamento de setores da imprensa é inegável, mas ele não justifica uma perseguição sistemática e indiscriminada. Devemos, ao contrário, adotar uma política de reforço e não de segregação indiscriminada. Reconhecer, identificar e prestigiar os bons jornalistas — pois eles são numerosos — ao tempo em que militamos contra os se valem de meios ilegítimos para alcançar seus objetivos. Contra aqueles de quem apenas discordamos, devemos fomentar o diálogo, discutir, com honestidade. E às vezes apenas aceitar que um acordo é inviável, visto que cada um parte de premissas incompatíveis.
Especialmente contra a ideia tendenciosa que se deixa insinuar em editorais dessa natureza: é preciso combater o argumento grosseiro que faz do papel indispensável da imprensa o álibi para o exercício irresponsável do jornalismo. É preciso policiá-la criticamente para que esteja sempre claro que a legitimidade do seu trabalho não é um termo abstrato, mas deriva concretamente do seu papel fiscalizador, do desempenho satisfatório desse serviço. À sociedade cabe também fiscalizá-la quanto a sua função, pois o equilíbrio entre os poderes numa democracia — e à imprensa cabe o quarto poder — depende de uma relativa igualdade e liberdade entre as instâncias. Criticá-la portanto é tão legítimo e necessário à democracia quanto o papel fiscalizador que ela exerce sobre as autoridades públicas — embora não necessariamente devamos acolher as críticas dirigidas a ela, assim com não devemos abrigar necessariamente todas as investidas contra as autoridades, é preciso um filtro rigoroso para depurar as informações. A crítica, de ambos os lados, é sempre legítima, mas não significa que ela seja sempre verdadeira. Não nos deixemos enganar pelos discursos abstratos que a título de defesa de princípios democráticos pretendem construir a passarela por onde desejam trilhar. Quem lê o texto do Estadão pode facilmente pensar que toda crítica é antidemocrática e ilegítima. Sob esse pano de fundo, não fica difícil prever o chumbo grosso que virá pela frente. Aceitar a declaração pública sem ressalvas, é outorgar uma carta branca para que se censure qualquer crítica de agora em diante. A medida que 2010 se aproxima, as coisas esquentam e os ânimos se acirram. Muito esgoto ainda correrá nas valas abertas que nós bem conhecemos. Escrevam o que eu digo!