Durante toda a minha vida acreditei no trabalho. Por isso, quando quis escrever — e escrever bem, como os bons escritores — cuidei de observar atentamente o modo como os mestres organizaram seus trabalhos. A maneira como encadeavam os períodos, a medida exata de cada recurso, o tom, se podemos falar assim, do discurso — tudo isso a fim de criar uma regra geral que pudesse me instruir no processo de criação. Rabisquei contos, poemas, esbocei ensaios. Nada me agradava. Era notório que minha autocrítica havia avançado mais do que meus dotes para a escrita.
Acima de tudo isso rejeitei a idéia do gênio. Ela sempre me pareceu um recurso dos preguiçosos, interessados em justificar a indolência. A condição do gênio impõe aos demais o dever injusto de superar pelo trabalho o que o berço lhe consagrou. Não há ocasião mais propícia para o exercício da preguiça e do conformismo, estes caros amigos da humanidade. Rejeitei violentamente o gênio e me empenhei ainda mais na inglória tarefa que me fora reservada pelas minhas limitações.
E eis que surge Cortázar e escreve um conto sobre a batalha de um homem para vestir seu pulôver (e então meus sonhos se despedaçam e eu fico como um velho cientista subitamente abduzido por alienígenas depois de dedicar a vida a compilar informações a fim de desacreditar a possibilidade de vida em outros planetas). Duas coisas parecem subitamente atingidas: minha pretensão de construir qualquer fórmula geral e minha negativa veemente da possibilidade do gênio. Sempre que eu estava as voltas com a elaboração de um conto, por exemplo, nunca me ocorreu senão pensar em temas grandiosos ou em aspectos sutis que, mesmo que de pretenso menor valor, envolvia a sutileza do olhar que devolvia ao tema a grandiosidade aparentemente perdida. Daí vem Cortázar e escreve como se escrever fosse possuir uma função literária insaturada de domínio ilimitado, que poderia ser preenchida com o que quer que fosse — aventuras envolvidas no simples gesto de vestir uma roupa, epopeias de uma caminhada até a padaria –, e o resultado era sempre uma narrativa fantástica e singular. O ofício de criar minha humilde fórmula corresponde ao caminho inverso: o trabalho penoso e errante de amealhar temas esparsos, diluídos num planeta enorme. Difícil não pensar, diante de No se culpe a nadie, que não há um gênio dominando uma arte para a qual nasceu. Não é que eu tenha desistido de trabalhar, nem que eu justifique minha incompetência na natureza do gênio, — ou talvez seja isso, não sei! — mas também pode ser tributo prestado a essas pessoas geniais imaginar que nenhum olhar humano, que nada que não esteja contaminado com alguma essência divina, pode mirar as coisas com tamanha sensibilidade — de modo a poder transformar em fantástico, o trivial. A simplicidade na organização das idéias, a espontaneidade no desenvolvimento de pensamentos originais, tais aspectos não se assemelham ao resultado da operação de um artífice experiente, mas ao trabalho de um… gênio. Não há mediação, não envolve esforço! Não é possível!
Adoro essas possibilidades mágicas que a literatura nos garante. Cortázar propícia muitos momentos semelhantes. Em todo caso, o dilema permanece ainda mais vivo. Enfim, meu texto quer menos resolver a questão do que sugerir a leitura do conto, e pedir que prestem atenção no modo como é construído. Tem-se a impressão de que ele poderia narrar com o mesmo brilho qualquer outra ocasião trivial do cotidiano. Como se o conteúdo, em si, fosse meramente fortuito, algo dispensável, e estivéssemos diante do exercício de literatura pura, que apenas por acaso assume a forma de um instante qualquer.
Nos últimos dias, além dos estudos que me sobrecarregam, meu computador permaneceu quebrado. As coisas andam tão pesadas que há 3 semanas não abro meu leitor de feeds. Tenho mais de 3 mil itens não lidos. Queria ter comentado sobre as eleições de Salvador no primeiro turno. Não pude. Espero ter tempo para fazê-lo no segundo. Enquanto isso, não desistam de mim. Aliás, curioso que, nesse período de inatividade, o número de leitores tenha aumentado.