O amor implica a posse

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Tenho uma amiga que insiste em defender a opinião de que o amor dispensa a posse. Nesse terreno eu sou conservador e sustento a opinião contrária. Antes de mais nada é preciso lembrar que o amor é um sentimento social que comporta a sensualidade mas também a afeição. As relações duradouras que o amor promove são alimentadas pela afeição. Se a sexualidade fosse dirigida somente pela consecução do ato sexual e se essa finalidade se impusesse de maneira absoluta, os objetos sexuais enquanto meios de aquisição do prazer e descarga da excitação seriam fatores secundários. Seria indiferente transar com X ou Y já que eles representariam apenas os meios pelos quais o fim é alcançado. Esse modelo de sexualidade não é dispensável — ele representa um comportamento praticado, infelizmente, com menos frequência do que o recomendável — contudo, convenhamos, ele não representa o amor em absoluto. O amor não é indiferente ao seu objeto, ao contrário, sua forma coincide com a esmerada engenharia do altar de seu objeto.

O amor é um sentimento social porque ao fazer do meio uma etapa tão importante quanto o fim — no roteiro biológico que é seu pano de fundo — ele prolonga uma relação que originariamente estaria fadada a terminar assim que o gozo fosse alcançado. A sexualidade inibida em sua finalidade é conteúdo do amor e da amizade.

A organização social se ordena segundo o propósito de distinguir objetos. Por mais homogêneo que alguém se mostre em relação as pessoas com quem convive, é inevitável que se faça algumas distinções entre aqueles com quem lidamos. Durante a vida nós distribuímos continuamente sinais de preferências e a rede que se constitui a medida que fazemos essas demarcações é de fundamental importância para nossa vida social e psíquica. Nos pais, amigos e pessoas próximas, nós reconhecemos a segurança necessária a certa condutas e comportamentos imprescindíveis ao nosso desenvolvimento. É óbvio que a hierarquia que resulta dessas preferências tem que ser balizada por critérios públicos. Se o amor de um pai não se materializa em atitudes, ao filho não é dado reconhecê-lo. A sociabilidade do amor se afirma uma vez mais, ele resulta da exigência de que a preferência se materialize num critério público, que em geral é parte de um ritual próprio a cada cultura. A posse então pode pela primeira vez se apresentar sem reservas: ela constitui um critério público de preferência. Contudo, a posse é o fator complexo, que não se restringe à exclusividade sexual. Não pensem pois que os casais que praticam swing são contraprovas a minha argumentação. Uma situação controlada na qual os parceiros participam mutuamente não constitui quebra de contrato, nem violação da propriedade. Repito, a preferência se afirma de muitas formas e não se limita a exclusividade, embora, evidentemente, a maioria das pessoas aceitem a exclusividade como o fator preponderante na determinação da posse.

Já é tempo de dizer que não se trata de vetar a possibilidade de relações abertas, elas existem aos montes e eu imagino que muitas pessoas se satisfazem com elas. O que eu interdito é que se caracterize como amor o sentimento que anima essas relações. Aliás, é difícil empregar qualquer caracterização. Se não podemos contar com os critérios públicos, definidos pela cultura ou por qualquer instância externa que sirva de norma, a caracterização do sentimento partilhado pelos membros de uma relação aberta só pode ter sentido entre eles.

Bem, deixemos de lado o trivial problema da nomeação e coisas afins, e passemos ao último e mais curioso aspecto dessa relação: a que se deve essa dissociação entre o amor e a posse? Ela é mesmo inocente, ou tem algum fim prático? Ora, todos sabem que o amor é o caminho curto para a felicidade, e ao mesmo tempo a mais segura fonte de desgraça. A felicidade que ele produz implica um risco iminente: a perda. E mais: o abandono, a não correspondência. O amor sem posses é o amor sem objeto, é o amor que faz do amar o próprio núcleo da sua atividade. Um amor sem objeto é um amor sem riscos, é um negócio da China (essa frase parece fazer sentido mais do que nunca, ahn?). Podemos então entender essa busca pelo amor sem posse como uma estratégia de defesa que se ergue na tentativa de evitar os dissabores inerentes a relação objetal. Não convém esperar, porém, que essa relação altamente sublimada ofereça a mesma vivacidade que a relação que se estabelece com um objeto. O princípio econômico aqui também vigora: quanto maior o risco, maior o lucro.

Isso posto, torna-se difícil enxergar a tentativa de separar amor e posse senão como uma formação reactiva a uma espécie de trauma. Curioso é que as pessoas se aferrem a necessidade de incluir suas relações no rol dos casos amorosos, como se restituíssem por esse fato algo perdido em direito. Parece uma espécie de sintoma ou algo que o valha.

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