Jogos de amor em Ligações Perigosas

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Entre uma e outra bebericagem, passei a tarde de sábado (24/11) apreciando uma feijoada (da qual fui co-autor) e discutindo Ligações perigosas, de Laclos. Meu pocket friend, Sir André Nascimento, insinuou uma leitura amarga da obra. Para ele, o núcleo do livro consiste na redução do amor a um agregado de objetos manipuláveis, a um jogo. Eu, ao contrário, considero que o livro trata do fracasso da idéia de jogo, ou seja, ocupa-se com a demonstração sofisticada de que não está nas mãos dos agentes, tal como eles pensavam, seu curso e desenvolvimento.

A idéia de jogo precisa ser claramente definida — ela deve balizar os limites entre o externo e o interno, isto é, demarcar o que faz parte do jogo ou não. Feito isto, passamos ao que concerne a ele. Um jogo competitivo deve guardar a possibilidade de vitória ou derrota. Os agentes devem ter o controle dos seus turnos, dos seus movimentos, e executar suas ações segundo uma gramática própria ao jogo. Bem, a origem do mal entendido corresponde a semelhança entre a articulação interna do jogo, sua sintaxe, e as expectativas quanto as condutas que se realizam nos meios sociais. Parece razoável esperar que certos meios sejam empregados na consecução de alguns fins. De quem deseja passar num concurso, é razoável esperar que ele estude. Parece possível costurar elos que frequentemente vinculam meios e fins — houvesse mil caminhos entre a casa de Chapeuzinho Vermelho e a da sua avó, decerto o lobo teria pedido uma pizza por telefone. O hábito e as instituições pelas quais a cultura imprime no indivíduo sua marca, porém, tornam possíveis os atalhos.

Acontece, pois, que o amor não difere dos outros aspectos da composição cultural. Entre o que ele quer e o que ele faz há um caminho claramente demarcado pelo hábito. Uma relação de poder pode se instaurar mediante o conhecimento prévio dos fins e dos meios habitualmente empregados na sua realização. Este é um princípio econômico. Numa cidade pequena, um empresário constata a quantidade de jovens recém-formados e decide investir num cursinho pré-vestibular. Essa é uma espécie prosaica de relação de poder, gosto dos exemplos prosaicos, eles desfazem o mito das ligações misteriosas. Uma demanda, uma oferta. Um desejo, uma satisfação. No amor, a relação entre esse dois pólos dá a falsa sensação de que é possível estabelecer um jogo.

Vamos nos deter ao livro. O Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil são bons jogadores. Conhecem os caminhos trilhados pelo desejo e, antecipando o projeto dos seus oponentes, fazem deles reféns de suas vontades. A coleção de vitórias parece testemunhar o sucesso dessa idéia: o amor é um jogo que pode ser vencido, cabe aos bons jogadores triunfar nesse fronte. Valmont e Merteuil pagaram alto por essa tremenda ingenuidade. Se o amor pudesse ser reduzido a essa relação econômica, ou como querem outros, a uma relação de poder, não haveria derrotas após o estabelecimento de um domínio de força, depois do acerto de conta entre o desejo e seu objeto. Valmont é o modelo desse esquema. Ele triunfa e, inesperadamente, fracassa. Como é possível? Ora, é possível exatamente porque há regras que não podem ser definidas no “jogo do amor” e seu agente poderíamos chamar de destino, acaso, ou Eros, sem, no entanto, adivinhar sua feição. Valmont consumou seu projeto, antecipou os desejos da Presidenta da Tourvel, cultivou-os com alguma elegância, gozou os prazeres de ver a virtude curva-se ante um desejo conscientemente planejado — e, contudo, fracassou. Se Valmont, tendo triunfado na execução do seu plano e fruído da virtude da madame de Tourvel, contudo viu-se vítima de Eros, como preservar ainda a noção de jogo? Se Merteuil, apressada em flagrar as fraquezas inconfessas de Valmont, parecia ser vítima de uma fraqueza semelhante, escamoteada pelo véu do poder e da dissimulação. Talvez ela não o soubesse, mas ao leitor não cabe outra coisa senão constatar o ciúme e o ressentimento que animaram suas investidas contra Valmont. Nisso que eles acreditavam ser o jogo, não houve derrotas. Valmont e Merteuil tiveram o que desejaram. Que jogo é esse cujo desenlace é traçado de fora, a revelia dos que pretendem ser seus agentes? Nesse domínio, no qual os componentes do jogo não têm o poder de decidir sua fortuna, vitória ou derrota parecem produto do acaso, indulgente concessão de Eros. Se Valmont e Merteuil não lograram conhecer o momento em que passavam de agentes do jogo a pacientes do destino, como pensar que tinham eles controle da situação? E se pudessem conhecer, poderiam evitá-lo? Essa pergunta transpõe os limites do livro, embora eu esteja inclinado a uma resposta negativa. Todas as vitórias narradas no livro não são outra coisa senão a feliz coincidência entre a vontade do jogador e os decretos divinos — dê o nome que desejar. Por fim, o livro testemunha a ascensão da miserável contingência que tem ocupado a humanidade desde a Grécia antiga. Talvez seja preciso Nietzsche (ou Sófocles) para nos fazer crer que é preciso amar esse destino trágico, que ele é o único que nos resta. Talvez seja preferível a verdade de um destino trágico à cômica ilusão do poder.

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