A presença humana

Júpiter, uma linda e tormentosa bola de gás.

Somos mais de 7 bilhões de seres humanos no planeta e vivemos quase todos numa economia globalizada cujo equilíbrio depende de fatores distantes não apenas do nosso olhar — da mesa ou da cadeira onde comemos nossas refeições —, mas também de nossos focos de atenção. Nós afetamos o planeta de um modo inédito. <fiction> Se um extraterrestre passasse pela Terra e do o espaço a contemplasse por mais de 500 anos, ele observaria uma mudança tão radical e violenta quanto as revoluções causadas na superfície de Júpiter pelas incontáveis tormentas que o constituem. Seres com outra relação com o tempo veriam nosso impacto como num time-lapse.

An animation showing deforestation in the Amazon
Time-lapse: histórico do desmatamento em Rondônia registrado no EarthTime. É como se fossemos uma doença de pele, é vergonhoso

Os extraterrestres talvez nem se dessem conta de que as mudanças são causadas por indivíduos, eles podem não fazer essa distinção. Embora tenhamos ferramentas de individualização, nem por isso pensamos os fenômenos gasosos em termos individuais, é a dinâmica de interação desses indivíduos (átomos, moléculas, invente seu sistema de individualização) o que nos interessa e o que provoca os efeitos com os quais estamos preocupados. (Podemos decompô-los em partes individuais ainda menores até chegar às partes subatômicas [menores unidades e objetos de individualização], então o sonho de determinação estará ainda mais longe e só a estatística poderá nos ajudar). Mas nós, ao contrário, somos muito individuais e tudo parece dizer respeito a nossa individualidade, nunca ao pertencimento a uma rede mais ampla </fiction>.

Não somos gases numa dinâmica de expansão, somos seres vivos, interferindo, agindo sobre o planeta. Agindo sobre ele. Agindo sobre o planeta. Interrompendo processos, manipulando cadeias causais, nem o mundo subatômico está livre do escrutínio e da intervenção humanas. A presença humana afeta todos os níveis e atua em todos os sistemas físicos. Não é preciso ser gênio para imaginar que não temos em conta o efeito sobre muitos dos sistemas que influenciamos. Por exemplo, não se sabe ao certo a concentração de biomassa formada pelos seres que vivem na zona crepuscular, nos oceanos. Qual é o impacto da acidificação dos oceanos, ou da presença nociva do plástico nesses sistemas? E qual é o impacto desse sistema no nosso próprio, que parecemos presumir que está separado dos outros sistemas naturais*? Nós sabemos o impacto da vida das abelhas em nossa própria vida — dos insetos em geral.

Twilight Zone: las amenazas de la última frontera de la humanidad en la Tierra

Ação e reação, que fique claro! Não é vingança (intencionalidade), é a mera reação de sistemas muito mais complexos que nossa capacidade de produzir sentido. Competência sem compreensão, diria Daniel Dennett. Competência para nos destruir, para destruir o anseio de previsibilidade que está por trás da busca por instituições, do Direito, e de todas as inúmeras partes que compõem o que poderíamos chamar de tecnologias da estabilidade (Tecnosfera).

A ficção científica apresenta diferentes modos de conceber nossa relação com o planeta. E para conceber melhor essa relação precisamos abandoná-lo e nos mover entre as estrelas, entre as galáxias. Wall-E talvez seja o filme que eu mais gosto nesse gênero, por ser o mais, digamos, realista. Seres humanos brancos e sedentários vivem num ambiente que em tudo se assemelha a um shopping center, nada pode ser mais honesto com as ilusões da nossa civilização. Ou um shopping center ou um daqueles cruzeiros sobre os quais David Foster Wallace escreveu. Um filme honesto e ainda assim gentil.

Recentemente eu gostei muito de High Life, que fala sobre a humanidade em ambientes espaciais, numa nave que viaja sem rumo pelo espaço. Fala também da esperança nos seres que virão e da nossa relação com o meio natural através das plantas, do solo, da terra. The Martian trata o tema das plantas sob a perspectiva utilitarista e pragmática dos engenheiros (lembro da Maria da Conceição Tavares falando sobre os EUA: um país de engenheiros). Repete em novas cores um episódio da tara survivalist da cultura americana, do seu sofisticado (porque científico) meio de elogiar o trabalho e a indústria (or you can get to work!). Isso de que There will be blood trata em primeiro plano. Não me levem a mal, o filme é bom. E boa parte do seu charme consiste numa generosa, embora secundária, mão de verniz de psicologia, vem do cuidado em mostrar os efeitos provocados pela falta do convívio humano, a importância da saúde mental para a atividade eficiente do corpo (da música, nesse contexto, como forma de memória e pertencimento). São tantos os filmes que apresentam ambientes espaciais e eu o menos indicado para resgatá-los.

Mas perguntemos aos astronautas quais os efeitos do espaço em seus corpos e mentes. Perguntemos àqueles que efetivamente já estiveram no espaço sobre o cheiro do espaço, sobre o que lhes parece aquele ambiente. Há um documento de uma página no site da NASA sobre atrofia muscular. E uma infinidade de outras informações. A nossa relação com o espaço (e com a Terra) na ficção científica está num grau de paridade realística semelhante à representação do mar na Tenda do Biquini, de Bob Esponja. Nunca nos ocorre pensar não apenas nos efeitos sobre o corpo — efeitos quase imediatos, pois depois de meros 11 dias no espaço os astronautas perdem até 20% de massa muscular — mas, sobretudo, nas consequências na nossa descendência. Os efeitos evolutivos.

A pressão evolutiva implicada numa mudança tão radical nos degeneraria num período irrisório de uma ou duas gerações, quando muito. Considerando apenas o distanciamento do sol, o perder nosso lugar na praia, já serie suficiente para provocar efeitos colossais. O impacto ósseo da falta de vitamina D, sintetizada principalmente pela exposição aos raios solares, nos tornaria criaturas de vidro, sem tônus muscular nem rigidez óssea. Não há substitutos para tudo que a Terra nos provê.

A exuberância da Terra é algo singular, não importa para onde nosso olhar se dirija — e nosso olhar é capaz de se estender muito longe, no espaço e no tempo — nada se compara, não encontramos nenhum lugar nem minimamente parecido. E ainda assim, a alienação da vida urbana nos acostuma ao pensamento de que somos independentes, e poderíamos fabricar nosso próprio ambiente, nossa própria biosfera.

Não há trailers legendados para o documentário Spaceship Earth, sobre a tentativa de criar uma biosfera artificial.

Todos os mimos, confortos e distrações da vida urbana excluem do nosso feixe de considerações o pertencimento à rede de vida do planeta, e nos enchem de uma arrogância cega e doentia, e de uma indolência diante dos efeitos nocivos da nossa presença. O fascínio dogmático pela complexidade.

A ecologia é o campo de estudo, teórico e transdisciplinar, que se impõe como um eixo inevitável para todos os que vivem e pesquisam hoje. No entanto, a ecologia não é nada mais do que um modo ainda canhestro e incipiente da ciência abordar uma questão ética mais profunda (a chave aqui é a oposição entre teoria e prática, determinação normativa e agência), a saber, como agir e como se organizar politicamente diante da inevitável constatação de que somos parte de um grande organismo. Nós até hoje — 2021, que fique claro —, não construímos nada que manifestasse que nos interessa de fato viver como se fossemos parte desse planeta. Agimos como se fossemos melhores, e como se o resto (seres e coisas indistintamente) estivesse a nosso serviço. As joias da nossa civilização, as cidades, não tem senão uma relação decorativa com a natureza. Por mais bonitos que sejam os parques urbanos — e eu sou um dos seus admiradores —, eles são apenas simulacros da natureza, não a integram como parte essencial, por melhor que seja o projeto urbano da cidade. (Quem desejaria outra coisa, aliás? A cidade é feita para não ser natureza, nela nós não queremos nem mesmo pisar na merda de outros seres.) O Rio de Janeiro deve ser lindo, sem dúvida!, mas é um caso especial. (O Rio de Janeiro está para as cidades como a Terra está para todos os outros planetas do universo). A cidade é asséptica, mesmo quando é imunda (Louis CK falando da imundice das ruas de Nova York). A cidade é cultura, a natureza ali é decoração e simulacro (não apenas os zoológicos). Ela tem seu próprio lixo, seu lixo não é mera decomposição, matéria morta ou queimada. Seu lixo é químico, poluente, mortal, mortífero.

Parques: simulacros da natureza. O belíssimo Parque do Retiro, em Madrid.

Não somos independentes dos outros seres sacrificados para manter e melhorar nossa forma de vida; estamos ligados à água que não vemos, ao ambiente em que circulamos como se ele não existisse. A ecologia como campo de estudo é sumamente importante e interessante, mas é a ecologia como ética é o que me interessa. Mas dá pra falar da ecologia como saber sem falar da ecologia como ética? Claro que dá, é o que temos feito até agora. Mesmo a ética nós ensinamos como técnica, não como ética [normatividade das leis morais versus prudência, a pragmática e a ética aristotélica]. É o que nos resta porque, no final das contas, não dá pra ensinar ética [não se pode ensinar a julgar: Aristóteles e Wittgenstein]. Daí a normatividade ganhou uma força enorme, e parece que não sobrou nada além disso (a filosofia moderna colocou a lógica e a matemática num pedestal e sedimentou o caminho para ciência contemporânea). Parece que tudo são leis (normas) e dados. Se para falar em ecologia precisamos então falar de ética, nós estamos realmente fodidos! Mas como transformar nossa relação com o mundo de modo que não sejamos meros (controladores && manipuladores) do mundo, mas também parte dele? Quero dizer, como fazer isso sem uma ética, sem valores que pareçam dirigir a ação (mas que são a própria ação) e o pensamento? Como transformar nossa relação com o planeta sem a reflexão implicada em pensar a ação e o pensamento? É claro que essa ética precisa do conhecimento, Aristóteles jamais negou o papel do conhecimento, mas o saber agir não se reduz a um saber. É um saber de outra ordem, ou um saber que não se sabe, mas que se manifesta no agir.

O efeito da nossa presença no planeta concerne a todos, não apenas porque não temos para onde fugir, mas também porque, dado tudo que conhecemos do universo, é sandice desejar algo diferente da exuberância à qual pertencemos na Terra. É nas cidades onde nasce e viceja esse sentimento antiecológico, esse independentismo biológico que alimenta o sonho de ser capaz de criar nossa própria biosfera. É na cidade onde a presença humana precisa ser reinventada como parte da natureza, é aí onde começa a questão ética, na polis.

* Porque pertencemos à Cultura (Kultur, isso que é diferente da natureza), uma cultura capaz de considerar a possibilidade de criar sua própria biosfera. A arrogância humana frente à Natureza.


Mapa contra o capitalismo

Criei esse mapa para apresentar uma objeção ao capitalismo de modo esquemático e até deliberadamente arbitrário. O mapa tem relação com essa discussão sobre nossa presença, sobre a ética da coexistência com o tecido da vida e sobre a nossa reintegração ao mundo.

Mapa contra o capitalismo. Torneiras e instrumentos, voltando ao mundo. O urbano como antiecológico: capitalismo e serviços. Conforto e comodidade. O paraíso urbano (subjetividade e hedonismo)! Impessoalidade e privacidade, como conviver com os outros. Falar com estranhos, ser estranho.

Racionais por definição

O crânio de um homem moderno e de um neanderthal.

As formas mais primitivas de falsificacionismo sustentavam que um contra-exemplo poderia efetivamente pôr abaixo uma teoria. Eu já citei por aqui os curiosos expedientes empregados pelos cientistas e elencados por Lakatos para dissolver os contra-exemplos e anomalias que poderiam, em tese, falsificar uma teoria.

For instance, if a planet does not move exactly as it should, the Newtonian scientist checks his conjectures concerning atmospheric refraction, concerning propagation of light in magnetic storms, and hundreds of other conjectures which are all part of the programme. He may even invent a hitherto unknown planet and calculate its position, mass and velocity in order to explain the anomaly.

Os princípios gerais da ciência, como as regras e proposições de uma linguagem, são como lentes: nós enxergamos através delas. Por isso é extrema ingenuidade pensar que na ciência, como na vida cotidiana, qualquer experiência contrária será o bastante para nos fazer abandonar nossas convicções mais profundas.

Imaginem que vocês estão andando pela rua e de repente veem um boi voado, flutuando em pleno ar (perdão, mas eu queria uma imagem bem extravagante). Diante disso, quase ninguém estaria disposto a esquecer as leis da física e a incompatibilidade desse evento com o modo de organização da nossa experiência que, aliás, não é mistério nem para uma criança de 5 anos. Na certa vocês buscariam alguma explicação, suporiam truques, ilusões; um mágico, David Copperfield, pode estar por perto, nunca se sabe! Talvez, por fim, desistiriam de buscar a explicação — mas mesmo então não estariam ainda dispostos a desacreditar as leis da física. É certo que pode haver alguém que prontamente abandone tais crenças, acreditando que o boi é manifestação da vontade de Deus. Mas pense: que tipo de experiência poderia fazer essa pessoa abandonar a sua crença nesse Deus que agora se manifesta na presença de um boi voador? Você verá que o embaraço é o mesmo em que se mete alguém que tenta pensar as circunstâncias que nos levariam a abandonar as leis da física. Nós podemos sempre transformar um evento patentemente desajustado aos padrões mais elementares da nossa organização racional numa anomalia que não os compromete enquanto princípios de organização. E assim, fazer conviver as mais absurdas incongruência e a mais sincera fé na racionalidade.

(É claro que eu sei que há respostas razoavelmente satisfatórias em filosofia da ciência para essa tendência ao ad hoc. A dificuldade de se chegar a um acordo sobre que tipo de experiência poderia contrariar um teoria e como isso acontece não é o que eu quero destacar aqui. Na curso da ciência as coisas se transformam, ainda que vagarosamente. Antigas experiência agora são admitadas, outras, preteridas. Mas na vida cotidiana, isso é quase impossível. Não há um equivalente a comunidade científica definido e julgando padrões para aceitar uma teoria ou outra.)

O que me deixa angustiado é pensar que talvez todo o “projeto humano” seja uma espécie de crença bem mascarada, porém, inútil. Não é que eu precise ter garantias de que seja possível “triunfar” ou pelo menos dar bons passos em direção à resolução dos problemas centrais da nossa espécie, a questão é outra: será que somos capazes de identificar limites que ponham em cheque nossos modelos? Ou será que somos como cientistas hipostasiando planetas nunca vistos (ou inexistentes) para explicar desvios de órbitas? Ou como os crentes bradando o eterno mantra: “Deus escreve certo por linhas tornas” (que é, no final das contas, uma tautologia)? Ou seja, será que somos capazes de reconhecer a tempo que estamos indo em direção a um abismo ou estaremos sempre inventando novos meios de nos convencer de que estamos no caminho certo, para não arcar com o custo das mudanças?

Talvez Schopenhauer estivesse certo e nós sejamos meramente uma vontade cega e incontrolada que impulsiona nossos projetos e estimula nossas máscaras. Sempre que penso nisso, sinto um enorme fastio, como quem contempla outro alguém num trabalho penoso e manifestamente vão. Talvez sejamos racionais só por definição.