Manual de sobrevivência

Às vezes períodos difíceis da nossa vida, desses que a gente atravessa com perturbação e desassossego, desvanecem na memória e no passado quase como se não tivessem existido, enquanto em outros momentos coisas aparentemente incompreensíveis perduram na lembrança. Eu não esqueço quando pulei uma pessoa numa escada rolante na estação da Lapa. Me senti mal por ter feito aquilo, embora soubesse que era a única coisa a se fazer. O que mais eu poderia fazer? Parar e perguntar, “Cara, cê tá bem?”, pra um bêbado adormecido (ou desmaiado) na entrada da escada rolante de um terminal de ônibus? — Que tipo de idiota tem essa atitude? Vai levar pra casa todos os bêbados, malucos, moradores de rua, todas as pessoas perdidas, todas as solitárias, todas as se fingem de forte para dissimular sua dor? Quem você está querendo salvar agindo assim: ele ou você? Ele não era eu, era um outro, um desconhecido.

Em certo ponto da vida, geralmente quando somos crianças, nos apresentam ao Manual de Sobrevivência. Não somos apresentados formalmente, mas pouco a pouco nos damos conta da sua existência. É certo que as crianças tem uma enorme predisposição sádica, mas elas tem também curiosidade e interesse autêntico. Não raras vezes lhes espanta ver pessoas morando na rua, deitadas ou dormindo no chão onde os outros passam. O que lhes dizemos nessas ocasiões quando elas nos perguntam espantadas? Desconversamos, talvez. Como abordar um tema tão complexo com uma criança? Talvez nem mesmo os adultos a quem as crianças perguntam saibam explicar porque aquelas pessoas estão ali. É muito provável — dado a triste circunstância em que se meteu a sociedade brasileira — que seja dito às crianças que se tratam de vagabundos! Muitos se referem desse modo às pessoas que vivem na rua, como se a vida fosse algo muito simples e bastasse seguir uma série bem definida de regras. E aqueles que não fossem capazes de segui-las à risca seriam não apenas os únicos responsáveis pelo seu “fracasso”, mas pessoas desprezíveis e sem valor. Vagabundos! Assim alguns seres humanos se eximem de qualquer responsabilidade pelos outros e estão livres para pensar somente em si mesmos. A culpa é verdadeiramente terrível, mas não deixa de ser incrível o quão longe as pessoas podem ir para esquivar-se de responsabilidades que ninguém lhes atribue, mas que elas sentem como fardo invisível. Temos importado tanto da metrópole norte-americana que a distinção entre winners and losers já não parece uma ideia fora de lugar, mas algo que está em sintonia com o que há de pior em nós.

O caso é que as crianças são pouco a pouco desencorajadas a se ocupar com as pessoas na rua, a se importar com elas. São adestradas, como bons animais que são, a ter uma atitude “pragmática”, compatível com a vida cotidiana — são ensinadas a ignorá-las! Não dá pra salvar todo mundo. Há um ditado, muito realista, que me encanta: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de um milhão é estatística”. É natural ver o mundo com impessoalidade, pois é francamente compreensível a tendência a evitar a sobrecarga que cada pessoa representa se lhe concedemos a atenção que exige a justiça, se nos colocamos o dever de ser justos ao avaliar a sua história, como se ela fosse uma singularidade (particular) — e não um dos casos de uma regra (geral). É um fardo, a justiça é fardo, é um exercício que pesa (em termos quase computacionais, de recursos de memória). Que as pessoas queiram evitar esse fardo me parece inteiramente compreensível. Além do que, como lembrava Freud, o amor é o sinal de nossa distinção, há sempre algo de incontornavelmente tendencioso nos nossos julgamentos — e por isso o relativismo não representa o perigo que lhe atribuem. Estamos sempre em perspectivas e não há um lado de fora, um real que não seja perspectiva, mas objetividade.

O que é tão difícil de entender pode ser expresso assim. Enquanto permanecermos na província dos jogos de verdadeiro e falso, uma mudança na gramática só pode nos levar de um desses jogos para outro, e nunca de algo verdadeiro a algo falso.

Wittgenstein, gramática filosófica

Mas não é hora de falar disso, o que importa é que existe algo que nos inclina a uma misantropia, a uma insociabilidade, a uma privacidade, a um querer estar longe. Eu não posso dizer que não compreendo quem honestamente se confessa misantropo. Há boas razões para odiar as pessoas em geral. É claro que, se a impessoalidade prevalece e nos distanciamos desses seres odiosos que são os outros seres humanos, nós perdemos a capacidade de senti-los. E assim perdemos a ginga perto deles.

Deixamos de ser capaz de sentir o que é dito por Nai Palm, sobre sua orfandade e sua relação com a natureza.

Deixar de ser capaz de sentir os outros humanos não é uma perda qualquer, muito se perde com isso. Quem já esteve num estádio cheio, no carnaval, num show de música, teve pelo menos ocasião de sentir a força e a beleza da conexão entre seres humanos. No carnaval, quantas vezes a alegria da música nos fez sentir como se nos dissolvêssemos na ressonância desse sentimento coletivo, como se experimentar a alegria como indivíduo não fosse nada perto da experiência de senti-la na rua, com pessoas queridas e os outros desconhecidos. E como se a alegria não pertencesse a nenhum de nós, mas fosse de todos, e por isso mesmo fosse muito maior do que qualquer coisa que pudéssemos experimentar sozinhos. Não ser capaz de sentir isso é uma grande perda.

Nossa dor é que balança o chão da praça!” Chame gente talvez traduza melhor o espírito do carnaval, mas é difícil achar uma versão que espelhe seu caráter incendiário na avenida.

O que quero dizer é: embora afastar-se dos outros (ou manter em relação a eles uma distância impessoal) possa parecer a opção segura, prática e razoável, ela não nos afasta realmente deles, pois nunca deixamos de ser afetados pelas vidas dos outros, por mais esforço que façamos para viver em nossas bolhas. O covid19 talvez tenha nos feito lembrar disso, ou pelo menos esse fantástico texto me fez. Somos animais sociais e a rede que nos une tem laços profundos e tramas que nem mesmo suspeitamos. O que eu ia dizendo antes de começar essa longa digressão é que as crianças são encorajadas a ignorar as pessoas na rua, a fingir que não as veem deitadas nas calçadas, como se adquirissem assim uma espécie de virtude, uma habilidade que lhes torna aptas a viver no mundo. E quem pode negar a dura verdade dessa perspectiva?

O Manual da Sobrevivência, esse compêndio de regras para quem não quer ser esmagado pelo peso do social, não deixa de lembrar a sabedoria do verme, que se encolhe ao ser pisado para diminuir as chances de um novo pisão. Ainda que essa astúcia primitiva seja inegavelmente vantajosa, que tipo de seres humanos ela nutre?

Ser justo não é uma virtude que se ensina às crianças, mas nos parece imprescindível que, cedo ou tarde, os jovens aprendam a lidar com a ingenuidade codificada em sua programação padrão, de modo a evitar que sejam enganados, ludibriados, manipulados, etc. Deve-se substituir a ingenuidade por certo grau de esperteza e de malícia, com o objetivo de nos tornar menos sujeito à maldade humana em geral e à sua propensão parasítica em particular. Longe de mim fazer ressalvas a este aprendizado tão louvado e útil à sobrevivência dos seres humanos nas sociedades capitalistas, mas será que inibir uma propensão quase natural de importar-se com os outros não tem maiores efeitos? É verdade que as pessoas ingênuas chegam a ser irritantes, mas nada se compara àqueles que sentem prazer em confirmar (eles sempre se confirmam) a falibilidade do humano, como se dissessem: “Tá vendo, é por isso que estamos perdidos!”. Tratar todo impulso benéfico como a expressão de uma fraqueza a ser inibida tem nos custado muito.

É simplesmente impossível viver quando tudo nos afeta ou se não nos diferenciamos dos Outros — desde cedo aprendemos estas lições. No entanto, é verdade também que o esforço deliberado para responsabilizar o indivíduo por tudo que lhe acontece cria as condições ideias para o egoísmo e a indiferença. Não creio que devemos reagir a este esforço sistemático com o objetivo de evitar o egoísmo, há algo de inevitável no egoísmo e na egocentricidade. Mas é certo que poderíamos resgatar uma experiência entre seres humanos que se perdeu desde que temos estado sob a sombra dos dogmas liberais da competição e da individualidade atomizante. Talvez essa experiência seja o que se expresse natural e ingenuamente na atitude das crianças, em seu espontâneo interesse pelos outros seres humanos, um interesse não mediado pelos ardis dos sobreviventes e pelo amargor que inevitavelmente contamina suas lições de vida.


O sobrevivente é, acima de tudo, um ressentido e isso inevitavelmente me lembra esse deboche de Chico.

Debochando do cínico

Quem erigirá a imagem do homem?

Diante de tais perigos de nossa época, quem irá prestar os serviços de guardião e paladino da humanidade, esse tesouro sagrado e inviolável gradativamente acumulado por diferentes gerações? Quem erigirá a imagem do homem quando todos sentem em si apenas o verme egoísta e o medo submisso, quando todos decairam dessa imagem em direção ao animalesco ou mesmo ao meramente mecânico?

Nietzsche, segunda consideração extemporânea

Salvar o mundo

Embora eu tenha passado boa parte da vida cercado de crianças, durante muito tempo tive um grande desprezo pela juventude. Eu sabia de cor a resposta de Nelson Rodrigues a Otto Lara Resende, as palavras, o conselho que ele deu ao jovens naquele final da entrevista: “Envelheçam!”. Achava os jovens — e principalmente os adolescentes — pedantes, acéfalos, auto-absorvidos, desinteressados de tudo que não fossem eles mesmos, descomprometidos e inconsequentes. Isso mudou. Mudou talvez por ter me dado conta da profecia de Belchior, de que o novo sempre vem. Talvez pelo desencanto com o mundo adulto, suas promessas e suas máscaras. Mas não importa, o que importa é que agora tenho as duas vozes.

Sendo assim, devo dizer que há poucas coisas mais patéticas, risíveis e ingênuas do que querer (salvar|mudar) o mundo. Expressar publicamente esse propósito é expor-se ao deboche. O adulto é, antes de mais nada, um sommelier de ingenuidade. Ele fareja a ingenuidade com a precisão com que um tubarão detecta uma gota de sangue diluída no oceano. A ingenuidade deve ser dizimada o quanto antes para que não dê lugar à ilusão e ao auto-engano. Vejam por exemplo a coluna de João Pereira Coutinho, sintomaticamente intitulada: Pensando seriamente o planeta. A obsessão adulta (e conservadora, especialmente) com a seriedade é algo embaraçoso.

A seriedade do partido conservador espanhol, o mais corrupto do país, mas sempre o primeiro ou o segundo (como atualmente) nas intenções de voto.

Não me levem a mal, a coluna é boa, mesmo que eu não esteja de acordo com ela. Nesses tempos sombrios, acho especialmente importante identificar na direita e nos conservadores ao menos um pouco de nosotros mesmos. Mas certos aspectos do seu texto traem uma visão engessada (vamos chamar assim) da relação adulto/criança. Ele pergunta:

Por que motivo o mundo adulto escolheu uma menina sueca como símbolo das lutas climáticas? Ou, em alternativa, por que não um cientista com provas dadas?

E em seguida diz:

A resposta é religiosa e emocional: porque Greta atua diretamente no subconsciente cultural da civilização, apresentando-se como a criança messiânica que nos vem redimir a todos. O ponto dessa observação era alertar as almas crédulas, que se julgam inteiramente racionais e até pós-religiosas, que existe uma dimensão de idolatria no fenômeno.

Como é bom pertencer ao mundo adulto e não ao ingênuo mundo infantil, alguém poderia pensar lendo o texto de Coutinho. Mas essa separação entre, de um lado, o religioso e o emocional e de outro lado o racional e o pós-religioso é insustentável. O conservadorismo não pode ser um escudo para justificar que as pessoas se detenham no tempo, essa imagem do racional é muito antiga e esse gesto antipsicologista é como andar de cartola pela rua nos dias de hoje. O mundo adulto é apenas um teatro onde certas posições são encenadas para que outros adultos se sintam confortáveis para não mudar o que pensam? — “Veja só, esse senhor muito sério pensa como eu, então estou seguro de que devo conservar a posição à qual fui adestrado!”. Reduzir a força do símbolo a mera idolatria, emocional e religiosa, inconscientemente dirigida, ao tempo em a que opõe à “imagem do cientista com provas dadas”, símbolo autêntico da racionalidade, é dar provas de que não se entende nem de racionalidade nem de símbolo. A racionalidade fria, não idólatra e não ideológica que Coutinho supostamente defende é um fantasma do passado e talvez seja justamente na irredutibilidade do símbolo e da constituição do sentido que se mostra a impossibilidade dessa racionalidade quase ciborgue/androide que alguns ainda esgrimem*, dessa racionalidade Spock. Essa impossibilidade se mostra na irredutibilidade da semântica à sintaxe. John Searle fala sobre isso num artigo chamado Minds, brains, and programs, onde ele discute o que chama de “teorias computacionais da mente”. Eu apresentei a citação inteira num post chamado Somos e não somos dados, mas talvez convenha citar só o começo:

A computação é definida sintaticamente. É definida em termos de manipulação de símbolos. Contudo, a sintaxe em si mesma não pode nunca ser suficiente para o tipo de conteúdo que apropriadamente acompanha pensamentos conscientes. Em si mesmo ter apenas zeros e uns é insuficiente para garantir conteúdo mental, consciente ou inconsciente.

Tudo isso fala da inescapabilidade do intencional e do semântico, uma discussão muito interessante, mas eu não quero me perder nela. O que importa nisso que eu sublinhei no texto Coutinho é que símbolo não pode ser reduzido à idolatria, à mitologia, e a todas as coisas indesejáveis que nós dissociamos da ciência (sem pensar seriamente) para usá-las como arma para minar a credibilidade dos nossos adversários. Mas o jogo dos adultos, o jogo de exaltar a seriedade e denunciar a ingenuidade dos outros, pode ser jogado a dois. Não dá pra pensar seriamente o símbolo e a racionalidade e sustentar esse espantalho que o Coutinho ergueu para fazer sombra em Greta Thunberg. Greta Thunberg é uma criança, um símbolo. Não é só isso, pelo que se ouve em suas palavras, mas é também isso — e este símbolo não é sem valor, não é um aspecto que nos escraviza à manipulação de dimensões inconscientes. O símbolo não é um elemento que pertence ao proto-racional, acientífico, mitológico, e a todas essas categorias assépticas e supostamente não-ideológicas com que um projeto de racionalidade nos foi vendido. Ele é também um modo de conectar que transcende barreiras, muito mais eficiente que a pretensão universal e formal do logicismo (em suas célebres expressões Kant/Frege/ Witttgenstein I).

Don’t go full CAPSLOCK!

Se não fosse capaz de calar a minha voz adulta certamente terminaria como um personagem de First Reformed, porque embora existam tanto adultos cínicos exercendo incontidamente seu sadismo ao denunciar a ingenuidade das pretensões da menina (o vídeo de cima é muito bom!), de maneira geral eles mantêm a descrença num nível intermediário, suficiente para denunciar ingênuos, mas não o bastante para amargar suas vidas. O desespero nunca lhes atormenta, não porque eles tenham coragem de enfrentá-lo, mas apenas porque nunca chegam a pensar seriamente a radicalidade do problema. A hipócrita seriedade dos adultos na maior parte das vezes só é posta em prática para fins egóicos, para extrair os pequenos gozos sádicos de denunciar as ilusões alheias — ela nunca põe em cheque suas próprias ilusões.

Por que afinal não queremos levar as crianças a sério? Talvez porque temos entranhada em nossa natureza um paradigma de desenvolvimento no qual creemos cegamente. Um paradigma nascido junto com as modernas instituições jurídicas, médicas e biológicas, como nos conta Foucault (o que nos leva a pensar que é por razão semelhante que não levamos a sério os loucos). Um cérebro ainda em formação, sem experiência, não tem nada o que dizer a uma subjetividade plenamente desenvolvida. — Vamos esperar até que essas pessoas tenham 18 ou 21 anos; então vamos olhá-las com desconfiança, mas as toleraremos, permitiremos que falem e que exponham seus propósitos, mas não as respeitaremos como respeitamos os humanos com mais de 35 anos, 50 anos idealmente. — Nem tudo que dizem os jovens e as crianças é desprezável, precário e sem valor, tanto quanto nem tudo que dizem os adultos tem importância. Não raras vezes a falta das mediações, intermediários e regras que a convencionalidade lança sobre nós ao longo da vida deixa ver uma perspectiva que bem poderíamos cultivar, como adultos.

É o gosto e o valor dado à complexidade que nos leva a desrespeitar a expressão da inteligência infantil, a usá-la como parâmetro para denunciar tudo que é subdesenvolvido (nossa obsessão com o desenvolvimento!), desprovido de sofisticação e da complexidade sem a qual supostamente nada de profundo pode se expressar. Essa atitude é a expressão de uma dieta unilateral, de uma visão não plural sobre a inteligência, antropocêntrica, abstrata e tendente às generalidades (formais e matemáticas). Daí porque ela tende a criticar a liberdade (a arbitrariedade) e a apresentar a evolução do humano como algo maquinal, sem emoções.

Há algum tempo já não tenho crianças ao meu redor, na minha vida. Pouco a pouco algo sempre muito natural em mim foi se dissipando, a espontaneidade perto das crianças. Estar constantemente cercado de adultos nos leva a, muito naturalmente, esquecer a própria sensibilidade com que devemos interagir com as crianças se não quisermos fazer mais do que meramente balbuciar sons sem sentido ou agir como se tivéssemos um subdesenvolvimento mental. Nos últimos anos, um dos episódios mais vergonhosos da minha vida envolveu uma criança. Eu conheci um professor que iria passar alguns meses morando em Madri, nos encontramos num bar de Lavapiés junto com sua família, sua mulher e sua filha de 9 ou 10 anos, não estou certo. No fim do encontro, todos nós nos despedimos e eu, sem saber o que fazer, passei a mão sobre a cabeça da menina, como se ela fosse um cachorrinho. Claro que pode haver um gesto semelhante plenamente natural e até carregado de carinho, mas não era o caso. Meu gesto não era mais que uma resposta genérica e insensível, sem espírito e totalmente desconectada daquele ser. Isso me encheu de vergonha. Ela não era um cachorrinho, mas um ser humano que me olhava de volta e via aquele ser já irremediavelmente sintonizado com o mundo dos adultos, desacostumado a agir senão segundo regras e padrões. Há muitas vantagens e benefícios no mundo dos adultos, mas há também muito cinismo. Ser capaz de se fazer entender e se comunicar com alguém supõe que em certo sentido sejamos também como esse alguém. Quando perdemos a espontaneidade com as crianças o caminho até a amargura que muitos creem ser lucidez é uma quase inevitável.

Assim, hoje em dia eu devo dizer que há poucas coisas mais bonitas, nobres, fortes, cheias de vitalidade e potência que o desejo infantil de mudar e salvar o mundo. Pode parecer que o cinismo e a amargura adultas são as virtudes realistas que nos restam após o salutar ocaso da ingenuidade, mas na verdade são apenas as expressões doentias e contagiosas do medo e da impotência. Confesso que não tenho nenhuma fé de que as transformações que precisamos venham por meio de mudanças institucionais — definitivamente não creio em instituições. (A mudança que precisamos exige o fim da forma de vida capitalista, na minha perspectiva.) Acompanho o Extintion Rebellion em muitas redes sociais e apoio Greta Thunberg não porque acredite que desse movimento possam resultar as mudanças que necessitamos, mas porque a respeito e respeito os jovens em nome dos quais ela fala. Respeito o seu futuro e sua inteligência presente. Quem não sabe reconhecer a diversidade das expressões da inteligência acaba vendo muito pouco da sua ampla extensão — termina vendo inteligência apenas onde está acostumado a encontrá-la e atrofia sua capacidade de aprender.

* Não é justo chamar de racionalidade ciborgue, Spock não é ciborgue. E a mentalidade ciborgue e androide apresentada na literatura, no cinema e na TV é muito mais próxima do espírito do Ghost in the shell do que de Spock. Vide Blade Runner, Her, o próprio Ghost in the Shell, Ex Machina, I am Mother, Westworld e todos os incontáveis livros, adaptações e obras originais onde se discute o papel da psicologia na subjetividade ciborgue e androide. Onde não há não apenas uma lógica (um organon), mas uma psicologia em todo seu esplendor.