Che Guevara e minha misantropia

Há coisas que nós sabemos, mas que só reconhecemos completamente quando falamos ou escrevemos sobre elas. Talvez porque as tenhamos sempre diante dos nossos olhos. Precisamos externalizá-las, torná-las objetos exteriores que podem ser manipulados com o olhar e o pensamento — algo independente de nós. Foi o que aconteceu com minha misantropia.

Nada mais familiar do que meu ódio pela humanidade, nada mais insistente do que a tendência a notar o pior nas pessoas e constatar a artificialidade de suas palavras e ações. O teatro das ações humanas inevitavelmente trai a leviandade com que as pessoas julgam a inteligência umas das outras e a desfaçatez com que creem poder dissimular suas intenções e desejos. Tudo isso era algo tão presente em mim que eu mal podia notar, era a própria moldura do meu campo de visão. Mais uma vez, foi Daniel Day-Lewis quem me fez ver o quanto essas lentes são capazes de envenenar.

A misantropia de Daniel Plainview e sua cega confiança na família, nos laços de sangue.

Antes disso, no entanto, uma espécie de antídoto já havia sido inoculado em minhas veias. Foi o que impediu que meu ódio me consumisse. E esse antídoto conta algo sobre mim tanto quanto minha misantropia.

Quando eu tinha pouco menos de 20 anos li um livro que, se não me falha a memória, era um caderno (ou cadernos compilados) de Che Guevara editado para publicação. Com o passar dos anos a memória dos livros que lemos desvanece, mas alguma coisa às vezes fica. Eu já mencionei aquilo que ficou em mim da leitura dos cadernos de Che, uma frase, enunciada quase com vergonha, que dizia algo mais ou menos assim:

Ainda que possa parecer piegas devo dizer que o verdadeiro revolucionário é movido por um grande sentimento de amor.

Há muitas crenças e ideias que eu não partilho com Che, inclusive a crença na revolução, mas a maioria das pessoas não conhece nada de sua vida e de suas ideias. Che sofreu com a arma mais nociva do capitalismo, a banalização. O capitalismo consegue transformar qualquer coisa significativa em algo banal pela mera assimilação e repetição (Marcuse insistia sobre esse aspecto). Neste caso, massificação da sua imagem. A mais mínima profundidade é aplainada pela sua redução a um mero imago, um ícone, um totem que circula sem intermediários nem reflexão, convidando as pessoas a imediatamente tomar partido das identidades que apresenta veladamente, como se tratasse da escolha de um time de futebol. Não é a toa que, sem que ninguém se desse por isso, a publicidade assumiu o lugar da Razão no século passado.

Nossas diferenças são menos importantes do que nossos acordos, aquela confissão quase envergonhada disse algo sobre mim e foi a partir disso que comecei a me identificar com a esquerda.

O corpo de Ernesto Che Guevara e Monika Ertl, a guerrilheira que matou seu assassino.

Um guerrilheiro que falava de amor me espantou porque eu simplesmente nunca havia pensado que alguém podia guerrear porque ama, porque foi levado pelo amor. Que o amor pudesse ser a força motriz de uma guerra. Nunca havia pensado por essa perspectiva e não entendia o que isso significava. Guerra para mim era ódio, vontade de eliminar o diferente, todas essas coisas que eu conhecia bem dentro de mim. O amor tinha que ser a paz. Che me fez ver o amor não como mera platitude, uma pasta amorfa e insípida de sentimentalismo barato que nos conecta através de uma rede de coisas vulgares e banais, ele me fez ver o amor como uma força nobre, poderosa, que poderia ser investida em atos e palavras plenos do melhor de nossa inteligência. Isso e meu sentimentalismo bobo e piegas contribuíram para que um contrapeso importante se opusesse a minha misantropia. Não foi pouca coisa, tendo em vista que também tendo à amargura e ao ressentimento. A construção quase inconsciente (em background) de uma imagem respeitável do amor — oposta à figura banalizada do amor romântico — foi importante para conter os danos em minha alma de algo tão imensamente danoso como o ódio. Quem não sabia, hoje sabe o que o ódio pode fazer com a mentalidade das pessoas observando a extrema direita e os bolsonaristas roots.

Em Diários de Motocicleta, a atuação de Gabriel Garcia Bernal reflete com fidelidade o espírito das palavras de Che Guevera.

O meu sentimentalismo piegas e até o desbotado amor romântico vendido nos modelos publicitários dessa sociedade que tem sempre um modelo que oferecer aos que desejam (quem não deseja?) abrigam verdades e meias verdades importantes, que não devem ser descartadas apressadamente.

Permitam-me até o embaraço de defender o amor romântico, a mais capitalista das representações, que adoça nossa vida e estraga nosso paladar. Embora Romeu e Julieta se multiplique como uma praga, repetindo um paradigma da força do amor contra o poder irreversível da morte, há experiências singulares do amor que não são reprodutíveis, porque não são repetem, não podemos vendê-las como modelos que as pessoas podem seguir, dada a singularidade da existência dessas pessoas reais. Eu penso, por exemplo, no amor de André Gorz, esse amor apresentado (e não representado) nas suas cartas a sua mulher, Dorine. Uma singular experiência do amor, que expõem as potencialidades indeterminadas implicadas na conexão real entre dois seres humanos. Até Feynman, ao seu jeito, parece testemunhar em favor da influência dessa conexão ao falar da sua primeira mulher, Arline, em What do you care what other people think?.

Tudo isso pra dizer uma platitude, para constatar uma banalidade: o amor também tem muita força. Às vezes a gente precisa voltar a dizer o óbvio, porque ele nos escapa. Vemos tão claramente a força do ódio, o impacto do medo em nossa sociedade global, que sentimos como se não pudéssemos reagir a isso de modo eficaz (desculpa a palavra). Não é verdade, nós também nos fortalecemos. O caso é que amar e encenar o amor não são a mesma coisa! E amar se aprende amando, já nos lembrava Drummond.

Eu gosto especialmente dessa primeira história contada em Human, sobre o impacto do amor na vida de um criminoso. O vídeo já está embutido de modo a começar nela.

PS. E é conveniente lembrar o caráter inseparável do amor e da amizade — mas como representar que sejam coisas diferentes e, ao mesmo tempo, inseparáveis?

O relativismo e a Justiça

O relativismo não é o bicho de sete cabeças que se imagina por todo lado. Na verdade ele é bastante intuitivo. E é preciso um grande esforço para seguir sustentando crenças universais uma vez que tenhamos sido expostos às circunstâncias em que o relativismo se manifesta. Mas é muito complicado aceitá-lo, não por outra razão o aforismo 81 de Humano, demasiado humano conta uma lição das mais difíceis de serem entendidas:

Enganos do sofredor e do perpetrador— Quando um homem rico toma um bem ao pobre (por exemplo, um príncipe rouba a amada ao plebeu), produz-se um engano no pobre; ele acha que o outro deve ser um infame para tomar-lhe o pouco que tem. Mas o outro não percebe tão profundamente o valor de um determinado bem, pois está acostumado a ter muitos; e por isso não é capaz de se por no lugar do pobre, e de modo algum lhe faz tanta injustiça como ele crê. Cada um tem do outro uma ideia falsa. A injustiça do poderoso, o que mais causa revolta na história, de modo algum é tão grande como parece. Já o sentimento hereditário de ser alguém superior, com pretensões superiores, torna a pessoa fria e deixa a consciência tranquila: nada percebemos de injusto, quando a diferença entre nós e outro ser é muito grande, e matamos um mosquito, por exemplo, em qualquer remorso.

Tem-se a impressão de que é o mais temível dos relativismos, o relativismo ético, o que Nietzsche apresenta nesse fragmento. Ele diz: o rico e o pobre, o que se crê superior e o que se acha inferior, cada um deles julga segundo normas distintas. Assim, quando o pobre julga a injustiça do rico ele comete um engano. Poderíamos dizer que o engano consiste em pensar que seu padrão de justiça é não apenas geral e comum mas universal. E é justamente isso o que nos ensina nossa educação antirelativista: que há dimensões universais que estão num nível acima das outras e que as englobam, sem deixar nada de fora, justo porque são universais. Portanto, o pobre achaque quem não é pobre julga segundo os mesmos padrões, padrões comuns porque gerais e universalmente compartidos. A universalidade de qualquer dimensão (normativa, epistêmica, ética, etc*) é o melhor antídoto contra a arbitrariedade que o relativismo parece inocular em nossa visão de mundo — e que nos apavora.

Por isso o exemplo do mosquito é aterrorizante, ele nos coloca diante da inescapável constatação da arbitrariedade dos nossos conceitos e normas: por que o mosquito não importa e outras coisas sim? Alguém pode até mesmo teorizar posteriormente às ações que manifestam essa diferença, para tentar justificar esse porquê oferecendo razões, mas a justificação que se fabrica depois não é suficiente para anular a arbitrariedade da norma. Trocando em miúdos, só porque é possível fabricar posteriormente razões que parecem justificar nossas ações (codificando normas que serão entendidas como verdadeiras) não significa que elas são por isso menos arbitrárias. Do mesmo modo, em um sentido decisivo temos o conceito de cores primárias não porque existem cores primárias. O que Nietzsche diz em seguida é mais forte e torna ainda mais difícil digerir o relativismo:

De maneira que não há sinal de maldade em Xerxes (que mesmo os gregos descrevem como extraordinariamente nobre), quando ele toma a um pai seu filho e o faz esquartejar, porque havia manifestado desconfiança medrosa e agourenta quanto à expedição militar: nesse caso o indivíduo é eliminado como um inseto irritante, ele se encontra baixo demais para que lhe seja permitido provocar, num conquistador do mundo, sentimentos que o aflijam por muito tempo. Sim, nenhum homem cruel é cruel como acredita o homem maltratado; a idéia da dor não é a mesma coisa que o sofrimento dela. 

Esquartejamento é barbárie, é violência pura e indesejável. O que quer que Nietzsche esteja defendendo é indefensável. — Nietzsche pode até estar defendendo realmente alguma coisa, mas seu relato pode ser entendido como uma mera descrição, ou melhor, sua alusão à figura de Xerxes e ao esquartejamento pode bem ser entendida como uma mera descrição usada para destacar algo. No mesmo sentido em que Wittgenstein dizia, se não me engano na Conferência sobre ética, que um livro contendo todos os fatos do mundo não teria nele nenhum juízo de valor. A alusão ao esquartejamento é repulsiva, mas necessária, porque é justo sua radicalidade que nos faz ver a força da analogia entre o exemplo do mosquito e o exemplo de Xerxes (a ficção em Wittgenstein e as alusões históricas e mitológicas em Nietzsche tem funções semelhantes). A analogia nos faz entender que agimos em relação aos mosquitos como Xerxes age em relação a certas pessoas. Podemos fingir que não existem e nunca existiram figuras como Xerxes, que podem dispor da vida dos outros como se essas pessoas fossem mosquitos, mas isso não deveria nos impedir de constatar que certas figuras (fictícias ou não) agem como se as pessoas fossem mosquitos — e que elas seguem códigos bem distintos. O “como se” é o mais importante porque ele nos liberta do compromisso da verdade (permitindo que a ficção possa nos ajudar a entender) e, ainda assim, preserva a força disso que gostaríamos chamar de verdade. A verdade do relativismo é difícil de aceitar, mas não dá pra dizer que ela é uma abstração monstruosa, inacessível e ininteligível.

O que torna o relativismo ético difícil de aceitar são duas coisas: 1) a impossibilidade de atingir (ou partir de) uma instância normativa superior, um tribunal de apelação superior, por assim dizer, e a 2) consequente constatação de que aceitar a localidade de toda pretensão normativa (sua não-universalidade) faz com que ajamos em relação às pessoas que possuem normas distintas de um modo impositivo. Nós não desejamos perder a possibilidade de julgar universalmente e tampouco queremos admitir que impomos nossas visões de mundo aos outros — pois em certo sentido disfarçarmos essa imposição por meio da importância que nossa cultura dá a ideias como verdade e lógica. Nosso pretenso acesso privilegiado àquilo que chamamos realidade (objetiva) entra também nessa camuflagem. Realidade no singular, convém enfatizar. Mas não resta muito o que fazer, para quem insiste em não entender o relativismo, senão aceitar os dogmas da ciência e da realidade que formam o mito fundador da nossa sociedade — ainda que ela não aceite sua base mitológica (toda cultura tem suas mitologias). Em qualquer caso, no Sobre a certeza Wittgenstein faz uma observação estreitamente relacionada a tudo isso:

609. Suponhamos que encontramos pessoas que não consideram [agir guiado por proposições da física] como uma razão convincente. Agora, como nós imaginamos isto? Ao invés do físico, elas consultam um oráculo. (E por isso nós as consideramos primitivas.) É errado da parte delas consultar um oráculo e ser guiado por ele? — Se nós dizemos que isso é “errado” nós não estamos usando nosso jogo de linguagem como base para combater o delas?
610. E nós estamos certos ou errados ao combatê-lo? É claro que há toda sorte de slogans que serão usados para apoiar nossa conduta.
611. Quando se encontram dois princípios que não podem ser reconciliados, seus partidários se declaram mutuamente loucos e hereges.

O relativismo arranca a base dos nossos pés, o solo normativo sobre o qual nos apoiávamos. Ou melhor, ele diz: essas regras e normas só valem em contextos específicos, são expressão de formas de vida particulares que, como todas as outras, tem um inevitável componente de arbitrariedade — por mais que lhes interesse politicamente ter razões (justificações) para impor suas normas a todos indistintamente. (A ideia de que todos os seres humanos tem a mesma forma de julgar e pensar é uma das partes mais importantes do amplo e ambicioso projeto teórico kantiano, por exemplo.) Uma vez despojados do apoio de nossos quadros normativos fundamentais, só nos resta agir instintiva ou reflexivamente. É importante saber agir instintivamente, mas é ainda mais importante saber agir reflexivamente. Essa reflexão que é estranhamente prática consiste na atividade de criar novas normas (e princípios), novos padrões de ação. Não criá-las do nada (ex nihilo), porque nunca nenhum ser humano se encontra no nada. Uma vez que nos encontremos numa dessas situações em que é quase inevitável constatar a localidade das nossas normas, a reflexão deveria nos encorajar a reformá-las, transformá-las e muitos casos simplesmente derrogá-las, em nome não de algo universal (ou mais universal) mas em favor da irredutível variabilidade dos tipos humanos. E também de uma compreensão não normativa. Pois em realidade nessas situações talvez nós não possamos efetivamente criar normas, encontrar esse lugar comum e forjar um acordo entre o eu (que representa um nós comunitário) e esse Outro que é tão diferente de mim (e que age de acordo com essa diferença), mas isso não deveria nos impedir de ser justos, de ter uma ideia de Justiça. Em realidade, é somente fora dos quadros normativos de pretensão universal que efetivamente podemos ser justos, que podemos saber julgar.

O reino das normas e das suas instituições reguladoras tira de nós a capacidade de legislar, de criar novos critérios e normas e, portanto, nos impede de ver o que vai mais além desse quadros. (Bem, não é certo dizer que as instituições tiram nossa capacidade de legislar, elas em realidade debilitam, retardam e transladam a outros instâncias essa potência criativa — burocratizar talvez seja a melhor palavra; as instituições envolvem o ato de criar normas numa dinâmica de legitimação [legitimação da norma, da regra, da lei] que melhor se descreve como burocrática, elas enfraquecem a espontaneidade do nosso ímpeto de legislar, sua força dinâmica e criativa, em nome da pretensão normativa universal mediada por instituições) Esse reino cria o que eu chamo de cegueira normativa (e a consequente tendência à confirmação), em função da justificativa de que não há nada do lado de fora. “A lógica preenche o mundo”, lê-se no Tractatus Logico-Philosophicus — não é verdade (ou melhor, é e não é), ela apenas nos ensina a ver ao tempo que nos cega para o que lhe escapa. (E o que escapa é o que está indeterminado.) O mundo da técnica, ao multiplicar não apenas os quadros normativos mas as justificativas epistêmicas que fazem dessas normas pretensamente preferíveis às suas alternativas (falsas, erradas, feias, chamem do lhes parecer melhor), enfraquece a capacidade de legislar e de julgar (que estão mutuamente implicadas) por meio da redução de todo julgar a um princípio de determinação (institucionalizado). A ausência de princípios de determinação universais que o relativismo implica embaraça nós que pensamos saber tudo e que só sabemos agir segundo e normas critérios já dados. Agir sem normas e justificativas universalizadoras exige uma sensibilidade que só se constitui quando abdicamos da pretensão de reduzir, que é a própria força motriz da vontade de universalizar. A universalização dos códigos, das normas (jurídicas ou técnicas), tem nos enfraquecido porque a capacidade de julgar — e a Justiça que ela instaura consequentemente — é uma atitude e nunca uma regra (norma). É uma atitude diante da variabilidade da raça humana.

É ou não é uma lição difícil?

PS. O relativismo não enfraquece a força prescritiva da norma, como se costuma pensar. Não é porque existem normas alternativas que nossas normas deixam de ser determinantes, a adesão a boa parte das nossas normas gerais é cega. O que o relativismo faz é desestabilizar, lembrando-nos da historicidade e do caráter instrumental dessas regras, o que nunca deveríamos esquecer, como bem nos lembra não apenas Nietzsche, mas Ortega y Gasset e muitos outros. O reconhecimento do componente arbitrário do nossos conceitos não compromete a universalidade deles, pois não podemos escapar da sua força organizadora, é o que alguns autores chamam de “inescapabilidade da semântica”. Ou melhor, ele compromete apenas quando esse reconhecimento começa a minar nossa identidade e a nos transformar, mas esse já é um outro tema.

* Porque a verdade pressupõe o sentido (para Wittgenstein, como para mim), toda pretensão de universalidade é normativa. A pretensão de universalidade do conhecimento (epistêmica), da ciência (conteúdo), bem como da lógica (forma), pressupõe normas que estabelecem padrões de correção que na ciência se transformam na dicotomia entre o verdadeiro e o falso e na lógica no binômio correto ou incorreto (ou sentido e non sense).