Sobre os eruditos

O erudito é um sujeito apegado ao quantitativo. Quanto mais melhor! E a complexidade que esse acúmulo quantitativo instaura na cabeça do erudito — especialmente se o que se acumula é variado e plural — é inapreensível por outros indivíduos. Isso significa duas coisas: 1) que todo julgamento sobre o pensamento alheio é necessária e inescapavelmente injusto e 2) que facilmente se pode esconder falsidades e coisas mortas sob o véu de um bem recortado painel de autoridades e citações.

Há muitos vazios desonestamente camuflados desse modo. A erudição costuma abrigar pessoas desonestas, com os outros e consigo mesmas.

Nadar contra a maré

O pensamento de Nietzsche foi instrumentalizado para dar estofo intelectual ao anti-semitismo e a toda sorte de bobagem. Deleuze, comentando um uso da ideia de vontade de potência, sublinhou algo muito importante que pode ser usado também para compreender a dificuldade de nadar contra a maré (sobre o que, em certo sentido, Nietzsche também escreveu).

Todo restabelecimento de valores implica solidão e desamparo, isto é, distanciamento de consensos e ausência de padrões externos de validação. É por isso que, lembra Deleuze, a força para Nietzsche — diferente do que pensam os fracos que distorcem a ideia de vontade de potência — é a plasticidade da dádiva, do conceder, e não significa um ajustar-se a padrões, mas o esforço de criá-los. Nadar contra maré não é encenar rebeldia, mas viver autêntica e corajosamente o desajuste, ainda que essa experiência não seja voluntária e deliberada, e não poucas vezes, para quem não tem força suficiente, eroda a própria vontade de viver.

O espírito é apenas um

Não tem sentido estender a noção de individualidade ao reino espiritual, o espírito é apenas um. Nossa alma? Nossa alma é a alma do mundo. Talvez quando nos olharmos nos olhos possamos ver algo aí dentro, reconhecer essa coisa. — Nós mesmos? Não, outros como nós. E nos reconhecendo outros talvez possamos lembrar que não devemos temer a nós mesmos. E o feitiço tramado pelo medo se quebrará. Não há argumento contra o medo, e a confiança cega não é a solução, nenhum humanismo nos salvará!, pois não precisamos ser salvos, precisamos apenas encontrar meios de evitar que explorem a nossa desconfiança, aquilo que inibe o amor e estimula o ódio. Porque nada mais humano que desconfiar de um ser humano.

É provável que nunca cheguemos ao estágio em que confiar num ser humano seja sinal de prudência e bom julgamento. Usando uma imagem progressista: nunca chegaremos a ser assim “evoluídos”.

Quando vejo as pessoas que pedem dinheiro no metrô de Madrid, sentindo uma empatia certamente enfermiça, eu penso que o que mais dói nessa condição humilhante é ter que depender de algo tão escasso quanto a bondade humana.

Ser e parecer

Na sociedade capitalista a ideia de pluralidade, tão cara ao ideário liberal, raras vezes significa a pluralidade do ser, mas a do parecer. Assim se expressa a necessidade de individualização, de diferenciação estética, de singularização da aparência e do modo como se é percebido, mas essa diferença não se expressa com a mesma força nos valores e ideias que animam as ações. (Acho que não é necessário lembrar o papel do capitalismo nesse predomínio do meramente aparente). Se pudéssemos quantificar o aprofundamento das diferenças do ser e do parecer ao longo do tempo, e compará-las, veríamos que a contínua diferenciação estética não acompanha diferenças significativas de ideias, fazendo com que a aposta liberal na pluralidade nunca de fato leve água pro moinho dos melhoramentos que poderiam ter lugar na sociedade humana se nós efetivamente pensássemos de modo diferentes e se fossemos abertos às diferenças de pensamento. Para que a pluralidade produza efeitos mais que aparentes seria necessário construir uma outra relação com a estabilidade.