Considerações sobre o terrorismo

C

Nas décadas de 80 e 90 o terror na Europa era atividade predominantemente endógena. Os grupos paramilitares ETA, da Espanha (país basco), e IRA, da Irlanda do Norte, eram seus agentes. A diminuição das ações destes grupos coincidiu com o aumento progressivo das atividades terroristas islâmicas, culminando no cessar-fogo proclamado entre 2005 e 2006. Mera coincidência? Não foi uma transição nítida, mas decerto as atividades externas promoveram um desgaste político que concorreu para fim das atividades internas. Embora os métodos passem ao largo da institucionalidade, a lógica e os recursos que abasteciam os empreendimentos terroristas naqueles paises eram de procedência legal, vinham de simpatizantes e pessoas interessadas em suas causas. Com a ascedência desta classe de terrorismo e a veemente censura internacional aos seus métodos e propósitos arbitrários, o desgaste político foi inevitável e por consequência um enfraquecimento econômico e identitário — a presença de um claro propósito político, passível de negociação, constitui uma particularidade em relação ao terrorismo de origem islâmica. A degenerescência, porém, é o lugar onde a vida pulsa com mais sofreguidão, e os grupos que antes tinham na luta armada o baluarte de suas ações, na iminência de não mais existir, convertem-se em grupos políticos, institucionalizados.

Nos países cujas atividades terroristas estavam ligadas as pretensões de indepedência política de segmentos de sua composição, a luta armada sugere a única perspectiva possível, visto que nenhuma constituição facultaria um meio legítimo para fragmentação de sua própria soberania. Assim sendo, os interessados enxergavam no conflito civil um dispositivo através do qual a legalidade da fragmentação da soberania nacional viria a preço da manutenção da ordem e da vida de parte dos seus conterrâneos — uma espécie de chantagem supradimensionada, em nível político. Para eles, portanto, não interessava a destruição do Estado, tampouco seu enfraquecimento político, mas instalar uma coerção suficiente para que seus projetos pudessem ser avaliados como uma saída razoável diante das perdas acumuladas e da insegurança estabelecida pelo medo. Logo percebemos que a instituição política cumpre uma papel importante neste mecanismo, embora o jogo se dê num terreno da ilegalidade. Os elementos que compõe o arranjo político no lastro do terrorismo de procedência islâmica não se organizam de modo tão evidente por uma série de condições que se correlacionam. Primeiro e acima de tudo: os estados islâmicos tem como fonte de inspiração jurídicas os seus textos sagrados, particularmente o Alcorão, o livro da revelação. Consequentemente o Estado perda as feições laicas e ganha a flexibilidade simbólica da religião. Portanto num domínio de leis não-positivas, originadas a partir de um sistema simbólico de exegese (não um sistema técnico), as prescrições não centralizam-se em relativo acordo com uma constituição sólida de leis, mas oscilam no amplo limite entre a conveniência e as possibilidades interpretativas. Falta um sistema de verdade (qualquer ele que seja) que possa fixar fora de suas próprias asserções, os critérios de verificabilidade. Segundo, a distribuição do islamismo no planeta é heterogênea, quer geograficamente, quer politicamente. Em determinado país ele tem força plena e todas as ações políticas transparecem a forma religiosa, noutro, seu alcance está imiscuído entre formas mais semelhantes ao modelo político ocidental (é o que acontece no Líbano, o que torna a análise de qualquer reação armada um embaraço que pode turvar um exame imparcial). No caso da Palestina, por exemplo, se fosse exclusivo o propósito político e se o estado palestino estivesse investido de um poder soberano e irresistível sob o seus cidadãos, teria entendido a desocupação da faixa de Gaza como um passo fundamental em direção à conciliação, mas ao invés disso não conseguiu abafar as forças dissidentes que de dentro permaneceram fomentando o conflito. A atividade terrorista que provém deste cenário não tem um propósito que se apresente com clareza a partir de uma análise política, mas se costura num terreno onde os interesses do Estado (como parte de quadro internacional de paises) correlacionam-se com as prescrições de lei religiosa — não é de se estranhar que a diplomacia e a política internacional malogre em suas empresas. Por fim, o que pode dar conta do imprevisível que marca um estado de instalabilidade semelhante? Nenhuma solução política, decerto. A saída, talvez, passe por um viés étnico.

Como é natural que ocorra entre religiões, um fracionamento é produzido pela variedade de interpretações de um mesmo texto, ou um conjunto de textos sagrados. Alguma destas frações promove uma leitura radical do texto (que em geral tem teor simbólico) e está constituído aquilo que o conhecimento comum denomina de fundamentalismo. A menos que os livros sagrados sejam apenas figurantes no exercício do poder, deve haver entre os grupos que se aproximam e os que se afastam das leituras radicais um nexo relativa à verdade e ao erro. Quem quer que diga “chove e não chove” não terá enunciado nada, mas apenas proferido uma sentença com sentido (semântico) mas sem o menor valor para determinação do que é verdadeiro ou falso (apofântico). Qualquer texto que se pretenda inspiração para uma lei, ainda que religiosa, não se pode subtrair a função normativa de estipular o verdade ou falso, o correto ou o incorreto, e assim por diante, sob pena de não ter valor algum. Para mim, é desta maneira que recai sob a responsabilidade das etnias que se distanciam de tais interpretações extremas a responsabilidade por combater as posturas terroristas e por calar diante delas. Uma atitude diversa expõe suas fontes de valor ao descrédito público. Se considerarmos que grande parte do ocidente desconhece as muitas fragmentações em que se converte o Islã, unificando sob o título de muçulmano pensamentos diferentes, a esta mesma unidade identitária convergirá toda hostilidade produzida pelos absurdos promovidos por apenas uma parcela. Neste caso, manifestar uma pública opinião contrária, desfragmentar a fictícia unidade religiosa dos muçulmanos pode ser a única maneira de estabelecer uma identidade forte o suficiente para aliciar os jovens órfãs das atrocidades de paises civilizados, ou de evitar a progressiva (e cada vez mais forte) escalada da direita nacionalista dentro dos paises que se vêem ameaçados pelos ataques. Vê-se que o que está em jogo é muito mais do que um conflito regional, é a estabilidade de todo planeta.

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