No início do seu discurso de paraninfo, David Foster Wallace conta a famosa anedota sobre a água. Dois peixinhos encontram um peixe nadando na direção contrária, que lhes pergunta como está a água — e eles não sabem o que é a água. Uma anedota profundamente wittgensteiniana para um sujeito profundamente marcado pelo pensamento de Wittgenstein. Como a água na anedota, o dinheiro é um elemento desapercebido, invisível, dada a sua ubiquidade. Ele está em toda a parte e por isso é como se sua importância não pudesse ser notada. No entanto, não se enganem, o dinheiro é o eixo principal da sociedade humana. O dinheiro é aquilo que tem mais valor.
E é curioso que, dada a condição instrumental do dinheiro, ele não deveria ter nenhum valor. O dinheiro, como um padrão, não tem valor, pois ele é a condição da determinação do próprio valor (financeiro). O metro de Paris não tem um metro, ele é condição para aplicação do padrão metro. A condição é aquilo que torna a medição e a medida possíveis, então é como se ela antecedesse a atividade de medir e determinar conforme um padrão. As coisas podem ser valoradas e podem ser estabelecidas equivalências entre elas por meio do dinheiro, mas o dinheiro em si deveria permanecer um instrumento sem valor em si (lição tanto de Marx quanto de Wittgenstein). Que estranha sociedade essa que transforma a medida do valor na coisa mais valiosa que há; mais do que isso, que desidrata padrões alternativos até o ponto de que o valor financeiro seja a medida última de todo o valor. Ou seja, tudo que ela considera valioso tem e deve ter fundamentalmente uma correspondência financeira, um lastro financeiro.
Mesmo quando queremos falar de coisas importantes, supostamente de valor inestimável, parece conveniente lembrar que elas não tem peso econômico — e se tivessem, talvez pudéssemos considerar prescindir delas, dada a lógica do raciocínio. A afirmação da falta de custo financeiro é modo sintomático e quase inconsciente de afirmar o dinheiro como medida universal do valor.
O caráter absoluto do valor financeiro como medida exclusiva do valor, como única medida de valor com a qual, secretamente ou não, todas as coisas têm seu valor convertido, cria uma enorme distorção na sociedade. O dinheiro é como um buraco negro cuja força gravitacional não permite que nada se afaste e que se impõe inescapavelmente, medindo e avaliando segundo seus padrões. Pouco a pouco, como não temos conseguido romper com essa lógica (se é que verdadeiramente desejamos isso), deu-se uma dinâmica de naturalização que é hoje a realidade da nossa cultura, ou seja, aquilo que foi culturalmente instituído hoje é simplesmente invisível, reproduzido cega e inquestionavelmente como coisa natural, está naturalizado (virou segunda pele) — e diante desse estado de coisas não temos alternativas, pois não sabemos agir senão conforme essa medida. Se somarmos a este cenário o acordo secreto entre liberais e conservadores, a desconfiança vendida como sabedoria, igualmente ubíqua e devidamente alimentada pela lógica do medo, temos um panorama desolador, impossível de se desvencilhar senão por meio de uma cultura do amor da qual estamos tão imensamente distantes.
A lógica e a inescapável axiologia do dinheiro agrava as circunstâncias de uma sociedade profundamente desigual, onde o 1% mais rico fica com quase 2/3 da riqueza produzida no mundo, pois a escassez do dinheiro sobrevaloriza ainda mais algo que não deveria ter valor. Nesse fragmento de A servidão humana, de Sommetset Maugham, escrito há mais de 100 anos, está maravilhosamente representado esse efeito nefasto, que é uma das consequências da importância desmedida que atribuímos ao dinheiro:
Ouvira outros falarem com desprezo do dinheiro: teriam experimentado um dia viver sem ele? Sabia que a falta de dinheiro torna o homem mesquinho, vil e avarento; deforma-lhe o caráter e o faz olhar o mundo por um prisma vulgar. Quando se tem de levar em conta cada vintém, o dinheiro assume uma importância grotesca. É preciso que estejamos numa situação desafogada para atribuir-lhe o seu valor real
Sommerset Maugham, A servidão humana
O mundo tem muitos problemas discutíveis, muitos problemas que talvez não sejam tão centrais quanto julgamos ser, mas uma coisa é certa e deveria ser clara para cada um de nós: não devemos esperar nada de verdadeiramente bom de uma sociedade cuja coisa mais valiosa é o dinheiro.