Há poucas coisas mais divertidas e inspiradoras a se fazer nas férias do que ler Nietzsche. Passei agora a Humano, demasiado humano. Selecionei aforismos curiosos e polêmicos.
Aforismo 58.
O que se pode prometer — Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas ele pode prometer aqueles atos que normalmente são consequência do amor, do ódio, da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos: pois caminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa de sempre amar alguém significa, portanto: enquanto eu te amar, demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar, continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outros motivos: de modo que na cabeça de nossos semelhantes permanece a ilusão de que o amor e imutável e sempre o mesmo. — Portanto, prometemos a continuidade da aparência do amor quando, sem cegar a nós mesmos, juramos a alguém amor eterno.
O aforismo 81 é uma rubrica psicológica bastante acurada, embora não deixe de despertar estranhamento e até censura.
Enganos do sofredor e do perpetrador — Quando um homem rico toma um bem ao pobre (por exemplo, um princípe rouba a amada ao plebeu), produz-se um engano no pobre; ele acha que o outro deve ser um infame para tomar-lhe o pouco que tem. Mas o outro não percebe tão profundamente o valor de um determinado bem, pois está acostumado a ter muitos; e por isso não é capaz de se por no lugar do pobre, e de modo algum lhe faz tanta injustiça como ele crê. Cada um tem do outro uma idéia falsa. A injustiça do poderoso, o que mais causa revolta na história, de modo algum é tão grande como parece. Já o sentimento hereditário de ser alguém superior, com pretensões superiores, torna a pessoa fria e deixa a consciência tranquila: nada percebemos de injusto, quando a diferença entre nós e outro ser é muito grande, e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso. De maneira que não há sinal de maldade em Xerxes (que mesmo os gregos descrevem como extraordinariamente nobre), quando ele toma a um pai seu filho e o faz esquartejar, porque havia manifestado desconfiança medrosa e agourenta quanto à expedição militar: nesse caso o indíviduo é eliminado como um inseto irritante, ele se encontra baixo demais para que lhe seja permitido provocar, num conquistador do mundo, sentimentos que o aflijam por muito tempo. Sim, nenhum homem cruel é cruel como acredita o homem maltratado; a idéia da dor não é a mesma coisa que o sofrimento dela. O mesmo se dá com o juiz injusto, ou com o jornalista que engana a opinião pública mediante pequenas desonestidades. Em todos esses casos, causa e efeito estão envoltos em grupos de idéias e sentimentos muito distintos; enquanto inadvertidamente se pressupõe que o perpretador e o sofredor pensam e sentem do mesmo modo, e conforme esse pressuposto se mede a culpa de um pela dor do outro.
Mas os aforismos sobre as mulheres são os mais engraçados. Preconceituosos às vezes, revelam, no entanto, uma sabedoria ancestral masculina que em geral apenas por hipocrisia se mostra inconfessável. Aforismo 400.
Natureza de Proteu — Por amor, as mulheres se transformam naquilo que são na mente dos homens por quem são amadas.
Aforismo 401:
Amar e ter — Em geral as mulheres amam um homem de valor como se o quisessem ter apenas para si. Bem gostariam de trancá-lo a sete chaves, se isto não contrariasse a sua vaidade: pois esta requer que a importância dele seja evidente também para os outros.
Longe da polêmica, com frequência surgem aforismos de sabedoria universal e incontestável, como o 406:
O casamento como um longa conversa — Ao iniciar um casamento o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com esta mulher até na velhice? Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte de tempo é dedicada à conversa.
De volta ao humor mordaz, 418:
Fazer-se amar — Como, num par amoroso, geralmente uma pessoa ama e a outra é amada, surgiu a crença de que em todo comércio amoroso há uma medida constante de amor: quanto mais uma delas toma para si, tanto menos resta para a outra. Podo ocorrer, excepcionalmente, que a vaidade convença cada uma das duas pessoas de que é ela quem deve ser amada; de modo que ambas querem se fazer amar: do que resultam, em especial no casamento, cenas algo cômicas, algo absurdas.
O aforismo 420 é um dos que eu gosto mais:
Quem sofre mais — Após uma desavença e disputa pessoal entre uma mulher e um homem, uma parte sofre mais com a idéia de ter magoado a outra, enquanto esta sofre mais com a idéia de não ter magoado o outro o bastante, e por isso se empenha depois, com lágrimas, soluços e caras feias, em lhe amargurar o coração.
Genial!
Muito bom.
As minhas partes preferidas do livro foram reunidas aqui. O rompimento de Nietzsche com a religião fomentou um olhar crítico e apurado sobre as relações humanas, descritas de forma um tanto cítricas e irônicas mas que reproduzem apenas a realidade. Excelente leitura.