Doce intimidação

D

Alguns tipos me intimidam. Uma amiga, de quem já fui mais próximo, é um bom exemplo de um desses tipos. Bonita (pelo menos para mim: antes que os conhecidos façam objeções), charmosa, inteligente e algo misteriosa. Apesar do comércio filosófico e literário que havia entre nós, oferecendo alguma afinidade, um obstáculo causava embaraço. Ela é descrente quanto as coisas do amor. Essa caraterística anula o avanço nas outras áreas. A sabedoria de senhoras diplomadas nos ofícios amorosos reza que, consentindo em falar de amor, uma mulher cedo acaba por tomar parte nele. Vocês dirão: mas há outros caminhos e o amor não é o único intermediário entre um homem e uma mulher. Eu sei, mas ainda sim me intimida o não poder contar com recurso tão habitual.

Esperem! Talvez ao final vocês entendam.

Essa volta toda por conta de um diálogo de Mad Men, série recém premiada no Globo de Ouro. De passagem: a série se desenrola nos anos 60, envolvendo um famoso publicitário que de princípio tenta emplacar uma campanha para a Lucky Strike, apesar de matérias publicadas no Reader’s Digest imputarem ao cigarro a causa de doenças como câncer, etc. Após desentendimento com uma cliente, Don Draper, personagem principal, marca um encontro para aparar arestas — num restaurante onde a cena que eu comento se dá. Don pergunta por que ela não casara (o machismo impera na série, o próprio Don estranha o fato de ter que lidar com uma mulher), ao que ouve como resposta uma bela inversão que salienta o sexismo implícito. Apesar disso, ao fim ela revela: “nunca me apaixonei”. Don então despeja um discurso cético, em comentário à motivação para não casar que ela ofereceu. Abreviando suas palavras, o que ele diz é: “Tudo isso não tem sentido porque não existe. O amor é uma invenção de homens como eu, criado a propósito de vender meia-calça”. E continua: “O homem cria regras para lidar com o fato de que nasce, vive e morre sozinho e com o tempo esquece delas, mas eu não”.

Jon Hamm, o ator que intepreta Don, faz um bom trabalho, assim como Maggie Siff, a atriz que interpreta sua cliente, Rachel Menken. Ele transmite a segurança com que um cético pronuncia suas palavras, como quem pretende esterilizar um ambiente pútrido, pródigo em criar problemas, doenças. Mas é aí que o personagem de Maggie se sobressai e a segurança de Don dá lugar à intimidação e ao constrangimento. Por um instante eu fiquei tentado a comprar a tese cética. Ela é uma versão fatalista de uma leitura nietzschiana — e vocês bem sabem de minha afinidade com Nietzsche. Que as coisas tenham sido criadas pelo homem, todas elas, mesmo amor, não se segue à denúncia da desilusão ou o desencanto. Não é de se lamentar que tenhamos formado meios para lidar com o mundo. Não esquecer o papel do homem na criação desses artifícios é tudo quanto Nietzsche pediu ao seu homem, ao super homem. A ausência do contexto extático, do cenário fixo do amor, criado a revelia e para o homem não documenta sua fragilidade, ao contrário, sua força, sua criatividade. Don se desencanta por descobrir que tudo é mera invenção, como se a vivência do amor e das coisas inventadas fosse esmaecida pelo seu caráter artificial. O desencanto de Don é o sintoma da contaminação pela doença contra a qual ele pensa que seu ceticismo reage. Rachel Menken, sua cliente, bem o nota.

(Céticas ou crédulas, as mulheres frequentemente estão um passo à frente dos homens em alguns aspectos. Daí que, diante de questões como essas, mesmo a mais bem articulada segurança masculina se reduza a pó em face de um silêncio bem encaixado, interrompido somente pelo gesto seco e cortante que identifica o essencial e suficiente para desarmar. Jon Hamm traduz com perfeição o constrangimento de um homem desarmado. O constrangimento que raramente alguém verá estampado no meu rosto, pois estou protegido pelo sentimento de intimidação que alimento preventivamente. No entanto, posso ser traído pelo desconhecimento — Don foi uma das suas vítimas. Nunca se está a salvo da vaidade. De ceticismo, porém, não sofro).

Longe de qualquer “realismo”, Don é apenas um pessimista que à maneira masculina se arma de um discurso bem articulado para manter o status. Rachel vê seu discurso como uma “reação traumática” ou como uma arma de defesa. Essa inteligência propriamente feminina é intimidadora e fascinante. E aqui vale o bom emprego da palavra, interllegere. A parte o aprisionamento dos gêneros, a fixidez e intolerância com que alguns lêem qualquer coisa que separe em características homens e mulheres, o homem traduz suas armas e seus medos num discurso de força, num texto político, numa arma pública de defesa. A mulher vai mais fundo, ela lê entre, seleciona, separa, depura esse espaço público, e chega até as causas. Daí que diante de determinadas mulheres os homens se achem como Don, constrangidos, intimidados. Claro, nem sempre até a estagnação, mas com a cautela e paciência que se deve manter diante de tudo que é complexo e desconhecido.

Recortei o diálogo, pensem vocês mesmos a respeito. Observem os atores, vejam se eles não desempenham bem seus papéis.

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PS. E há ainda outro aspecto: mesmo tendo entendido tudo ela se nega a inverter o jogo, a transformar em arma o que compreendeu. Limita-se a mostrar o que entendeu e a outras palavras breves, entrecortadas por silêncios e pausas desconcertantes, empostadas num tom de segurança insuperável, de sabedoria mesmo. Coisa divina!

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