Ficha Limpa e a preguiça política

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Já sabemos que o projeto Ficha Limpa é inconstitucional, pois viola um princípio básico e bastante conhecido mesmo entre leigos: a presunção de inocência. Para quem sabe somar dois e dois, é óbvio também que o movimento para votar o  projeto é meramente oportunista. Em ano de eleição é comum esse tipo de manobra, projetos salvadores pululam a torto e a direito, como iscas prontas a capturar eleitores incautos ou como tática para limpar a imagem da classe política; mas logo são esquecidos, como não poderia deixar de ser.

O que surpreende — ou melhor, não surpreende — é a adesão e o entusiasmo com que alguns acolhem o projeto. Sempre que penso nisso, uma imagem me vêm à cabeça. O sujeito passa a semana toda assistindo novelas e todas as opções televisivas de diversão; no domingo, depois do Fantástico e do Big Brother, esgotadas as fontes de entretenimento, ele resolve abrir algum portal de notícias. Pasmo, descobre que o Brasil enfrenta problemas de corrupção. Indignado, resolve fazer algo a respeito. Por sorte, encontra o projeto Ficha Limpa e passa a militar veementemente a seu favor. As pessoas que apoiam projetos desse gênero parecem não ter ciência das profundas raízes que a corrupção lança em nossa cultura e sociedade. Cairam de paraquedas num país cuja históra é marcada pela corrupção generalizada, em todos os níveis do extrato social. A resposta à corrupção não resultará da elaboração de dispositivos providenciais capazes de congelar a atuação política dos corruptos (pois mecanismos já existem). Se os partidos tivessem tanto interesse em cortar pela raiz esse tipo de gente, definiriam em seus próprios estatutos cláusulas a fim de impedir a filiação e/ou candidatura de membros que respondem a certos tipos de processos (ao meu ver, isso evitaria o problema da inconstitucionalidade), ou resolveriam o problema sem apelo a qualquer código, apenas rejeitando democraticamemte, em suas convenções, a proposta de candidatura. Nada substitui a educação e o processo moroso e contínuo pelo qual a política se consolida em leis, práticas e consciência civil. Não há atalhos. O que os incontáveis problemas que o Brasil enfrenta pedem não é a adesão irrefletida ao último projeto polêmico e radical para acabar com a corrupção, mas a participação diária, penosa mas imprescindível, no debate público. Participação que exige leitura, informação, reflexão, cuidado. A política exige um compromisso maior do que infelizmente a maioria das pessoas está inclinada a assumir. É por isso que projetos e candidaturas messiânicos fazem tanto sucesso entre os que não estão dispostos a investigar mais detidamente os contextos e consequências das suas opções e idéias. A preguiça política é quase tão danosa quanto a própria corrupção.

6 comentários

  • Oi.

    Infelizmente estou incluída na lista de pessoas que assinaram a petição. Não fiz campanha (lembro que coloquei no twitter duas vezes) mas acabei assinando pq imaginei que outra coisa sobre o projeto de lei. Errei, sim.
    Eu li um post que você compartilhou no reader de um cara que sempre fala "classe média" isso e aquilo. Po, eu não sou da classe que ele cita. Eu sim estou incluída na lista de pessoas que pecaram e assinaram a bendita lista, mas não sou da turma que vocês descrevem no texto. Estou longe da participação social que eu imaginava pra mim ha 4/5 anos atrás, mas não me considero uma completa alienada. Falo isso pq tenho medo de certos tons em textos. Eu acho fantástico o que vc ta fazendo aqui. Você educa as pessoas falando que essa petição é errada, mas no momento que vc conceitua de forma tão especifica as pessoas você acaba afastando-as. Talvez esteja divagando, mas o fato é que simplesmente rotular as pessoas de classe média inútil (como fez o sujeito lá) não ajuda em nada. Só cria desavenças. Eu sei que esse tipo de pessoas existem aos montes, mas eu simplesmente ainda não consigo entender a necessidade de descreve-las nos textos. Dá pra entender minha "dúvida" ?

  • Tati,

    Minhas críticas às pessoas que endossam o projeto não se estende àquelas que meramente avaliaram erroneamente as circunstâncias e efeitos dele. Errar ainda é possível, permitido e em muitos casos, necessário. Ela visa certos "tipos" e comportamentos padronizados.

    Só o fato de você ter revisto sua posição, baseada nas novas informações que colheu, indica um preocupação em participar do debate — preocupação estranha ao tipo de pessoa a qual eu endereço minhas críticas.

    Contudo, pra mim, a crítica a esses tipos é indispensável. A aversão é sempre possível. O mais delicado tom (eu aprendi isso depois de muita experiência em namoros) pode ser sempre fonte de desentendimento. Meu tom, como o humor do blog sobre a classe média, pode ser alto, mas ele não é violento nem se furta a oferecer razões para fundamentá-lo.

    Entendo sua preocupação em evitar que o ambiente de diálogo se dissolva pela incompatibilidade supostamente criada pelo tom que imprimimos ao texto. Mas veja, se as pessoas não dispostas a se abstrair das condições particulares em que estão para entender um caso mais geral, se tudo lhes dói na condição de membros da classe média (como, aliás, eu também sou), talvez falte a elas a maturidade emocional necessária para participar de um debate.

    Porque, para mim, há duas opções: 1) ou você não se reconhece numa imagem e não liga 1.1) Pode ser que você não se reconheça mas também concorde com ela 2) ou você se reconhece 2.1) se concorda ou vê razão para lhe dar crédito, muda suas próprias idéias 2.2) se não concorda, argumenta em contrário.

    Só há espaço para um terceira opção se os argumentos estiverem baseados em ofensas ou se forem mal interpretados — e a possibilidade da má interpretação, felizmente ou infelizmente, não pode ser contornada por um tom mais ameno.

    PS. Além do que, eu tenho uma opção bem particular sobre as generalizações.

  • Entendo seu ponto de vista. O problema é que vejo cada vez menos consciência reflexiva nas pessoas. Aceitar uma crítica é uma martírio. Minhas discussões sobre Software livre com as pessoas me dá bagagem para isso e dessa forma começo a pensar se seria possível outro tipo de abordagem.

    Tá, mas eu entendi o que vc falou. E eu concordo, mas faltou a opção 2.3) Se reconhece, se ofende e não argumenta pois vai continuar com seu orgulho de não mudar de ideia :P. Mas aí não tem muito o que ser feito né?

    Tenho mania de divagar. Foi mal. =P

  • É verdade, Tati, há também essa última opção. Se bobear, ela é majoritária.

    É um dos desafios de toda argumentação. Mas não argumento que possa superar dificuldades que os interlocutores trazem consigo. Só mesmo a educação para refinar o debate, no final das contas.

  • Obrigado por escrever esse post, Leonardo. Faz tempinho que eu queria investigar melhor esse projeto antes de me posicionar a respeito, e seu comentário me faz crer que meus receios eram fundados.

    Um ponto que você não mencionou explicitamente, mas que parece assustador para mim, seria um particular potencial de abuso desse projeto de lei: mover um processo contra um potencial candidato, frívolo que seja, para impedir a candidatura.

  • Esse é um aspecto que eu pensei mas esqueci de mencionar na hora de escrever.

    É claro que ideia de Ficha Limpa envolve também a instrumentalização do judiciário. Num país extenso como o Brasil, haverá sempre alguém disposto a acolher denúncias descabidas apenas para inviabilizar a candidatura de algum adversário. Algo assim foi tentado, salvo engano, por ocasião de uma candidatura de Marta Suplicy. Não lembro ao certo, mas acho que Idelber escreveu sobre isso. Mas claro que o projeto não vai passar. Podemos ficar tranquilos, pau que dá em Chico dá em Francisco.

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