A internet oferece muitos textos e opiniões para quem quer refletir honestamente sobre a posição do Conselho Federal de Medicina e de alguns profissionais sobre a vinda de médicos estrangeiros. Quem prefere guardar cegamente uma posição continuará papagaiando os rasos pronunciamentos das entidades de classe. Aqui farei apenas um apanhado dos principais argumentos, temperando com poucas observações minhas.
Primeiro é preciso fazer notar que a classe médica é uma das mais bem remuneradas do país. Além disso, está reconhecidamente mal distribuída pelo território nacional — e essa é uma das razões para que se considere a contratação de médicos estrangeiros. A faixa salarial oferecida nos municípios do interior varia de 8 a 25 mil e mesmo quem se dispõe a pagar 16 mil não tem garantia de encontrará profissionais dispostos a aceitar a função.
Alega-se que a preocupação central das reivindicações externadas essa semana é com a qualificação dos médicos estrangeiros. O mínimo que se pode dizer sobre essa alegação é que ela ofende a inteligência alheia. Mascarar corporativismo e reserva de mercado sob o escudo de preocupações humanistas e altruístas é de uma covardia sem par. Mas não demora muito para que esses benfeitores revelem seu caráter. Além do mais, a opção considerada pelo Ministério da Saúde de não revalidar o diploma dos médicos estrangeiros no Brasil tem um propósito, como conta o texto de Drauzio Varella:
O ministério cogita a alternativa porque quem é aprovado na avaliação recebe registro permanente e pode atuar dentro de sua especialidade em qualquer região do país, mas a ideia do novo programa é que os profissionais de fora tenham permissão temporária de três anos para trabalhar apenas nos campos considerados de prioridade, como o de atenção básica em saúde. Segundo a assessoria do ministério, portanto, a dispensa está sendo pensada justamente para limitar a área de atuação dos estrangeiros, evitando que migrem para postos mais atrativos e compitam com profissionais brasileiros.
As condições de trabalho é um dos motivos oferecidos para explicar a dificuldade de distribuir a classe médica pelo país. Argumento pedestre. Não que não seja justa a reivindicação por melhores condições de trabalho, precisamos lutar por isso, mas esse não é um argumento que qualifique especialmente uma questão de saúde. Todos sabem as dificuldades que enfrentam até mesmo funcionários de Universidades Federais, imagine então os professores nas escolas do interior do país. Trabalham para ganhar menos de 10% do que ganha qualquer médico em um posto de saúde e não rara vezes não tem nem quadro no qual escrever. (Quando a procura é maior que a oferta é sempre possível fazer apenas o que se quer).
O mais importante é que a queixa contra as condições de trabalho é sintomática, ela revela frequentemente uma mentalidade atrasada que pensa a medicina como a mera operação de recursos tecnológicos. À queixa talvez eu devesse opor ironicamente o site dos Médicos sem fronteiras, que atuam no mundo inteiro valendo-se quase exclusivamente de suas habilidades clínicas. No entanto, é preferível dar voz a quem tem alguma autoridade para dizer o que diz:
Os nossos médicos estão mal preparados e têm medo de ir para o interior, pois lá eles não encontram a mesma infraestrutura que encontram em hospitais das capitais do País.
Diz Marco Aurélio da Rosa, doutor em Educação e Saúde pela Universidade de Sorbonne, na França, e com pós-doutorado na Universidade de Bologna, Itália, professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E ele diz mais:
Nossos médicos não sabem mais fazer uma boa clínica e baseiam os seus atendimentos apenas em exames. Não dá para equipar um hospital no interior do País com tantos equipamentos assim para fazer exames.
E corroborando a opção do ministério da saúde de preferir médicos cubanos, sentencia:
Os médicos da Espanha ou de Portugal vêm para cá para disputar mercado com os nossos médicos nos grandes centros do País, pois não há mais mercado para eles na Europa. Eles também não vão querer ir para o interior do Brasil. Quem vai para lá é o médico cubano que recebe esta formação social e a ideia é que eles fiquem por um período apenas
O programa de Agentes Comunitários de Saúde projetado por Adib Jatene é um exemplo de política pública que reflete outra mentalidade, centrada não no tratamento e na aplicação de caros recursos tecnológicos, mas na prevenção, na atuação profilática realizada nem mesmo por médicos formados, mas por agentes locais treinados. É uma mentalidade que espelha também uma visão multidisciplinar da saúde, visão combatida pelo Ato médico aprovado recentemente no Senado e contra qual não ouvimos nenhuma mobilização dos benfeitores médicos que recentemente foram às ruas em protesto.
Meu diagnóstico é que, apesar do silêncio, a maior parte da classe médica não endossa as demandas dos gatos pingados que apareceram na Paulista e em muitos outros estados do Brasil (mesmo que tenham sido ajudados por quem não deveria prestar esse tipo de auxílio). Esse pequeno grupo (quero crer) sofre de algum tipo de patologia política congênita que os impede de enxergar para além de seus umbigos. Esperançosamente aguardo que a avançada e sapientíssima medicina cubana tenha algum tratamento para esse mal.
PS. Link e comentários adicional após anunciado o programa Mais Médicos. Se os médicos brasileiros não prestam nenhum exame para aferir qualificação/capacitação, por que os médicos estrangeiros deveriam prestar?
Excelente. A comparacao com os professores da educacao basica, na minha opiniao, eh a que deixa clara que o que esta em jogo nao sao condicoes de trabalho. Eu so discordo de seu otimismo. Ainda nao vi um unico medico conhecido meu ser a favor dessas medidas. Minha tristeza com a classe se torna cada vez mais profunda, mas nao se pode esperar muita reflexao de profissionais tecnicos, infelizmente.
Meu otimismo foi um gesto político. Além do mais, apesar do barulho promovido pela CFM, e, naturalmente, por alguns médicos nas redes sociais, não há uma gigantesca mobilização em torno do tema.
Mas enfim, eu quero crer que grande parte apenas silencia.