Há pessoas que acreditam que o mundo estaria no rumo certo e desejável se nós taxássemos os super-ricos, ou se a maioria dos países tivesse programas de renda básica universal, e que combater a desigualdade no sistema capitalista é o caminho para uma sociedade melhor. Nada contra o combate à injustiça e a regressividade tributária (como Haddad e Lula tem feito no Brasil), muito menos contra medidas que desobrigam as pessoas a trabalhar: a obrigação de trabalhar é o maior fardo dessa geringonça incrível que é a civilização humana ocidentalizada. Nada contra nada disso, mas não quero escrever para essas pessoas, não quero dialogar nem argumentar com elas, não quero convencê-las a mudar de opinião sobre o que quer que seja. Não quero convencê-las de que o capitalismo é uma furada, se elas não entenderam isso até agora eu não posso convencê-las do contrário. Qualquer atitude diferente é perda de tempo. E então, porque precisamos fazer coexistir num mesmo mundo pessoas que pensam de modo incompatível, nós precisamos multiplicar os mundos, precisamos de uma pluralidade dos mundos, não é como se existisse apenas um grupo que tem razão e outro que não conhece a Realidade. Há dois modos de pensar e duas realidades, na verdade, múltiplos modos de pensar e infinitos mundos. A utopia não é nada mais do que a manifestação do entendimento de que não existe Realidade, no singular, mas realidadeS, no plural.
Onde dois princípios, inconciliáveis entre si, realmente se encontram, aí cada um declara o outro como louco ou herege.
Wittgenstein, Sobre a certeza, 611
Quem acredita que existe uma Razão universal que determina o que é verdadeiro e real — a Realidade —, e dessa maneira exclui o falso, precisa sempre argumentar com os que pensam diferente para convencê-los de como ver a Realidade, e a não comprar o falso pelo verdadeiro. A universalidade compele ao diálogo irrestrito, à conversa que não exclui ninguém e que deve incluir a todos. Um dos desafios da pós-modernidade consiste na recusa da universalidade, na descoberta da “localidade da razão” (apesar das suas pretensões universais), portanto tudo isso nos conduz a uma visão antropológica, etnológica, histórica sobre as racionalidades. E como há muitas realidades e muitas racionalidades, na maior parte das vezes quando nossos princípios se chocam, nós acusamos uns aos outros de desumanos, de irracionais, bestas e estúpidos. E somos todos nós tudo isso e muito mais!

E precisamente porque eu não quero escrever para reformistas, mas apenas para quem já está convencido de o que o capitalismo precisa ser superado, sinto como se fosse um dinossauro, um bicho em extinção, um louco, a bruxa da floresta, porque apesar de todos os confetes com que o socialista Mandami foi celebrado nas últimas semanas, ninguém leva a sério o pensamento comunista*. Existem essas pessoas a quem só lhes interessa pensar num outro marco? A julgar pelos memes que rolam pela internet, acho que sim.
O trabalho de convencimento é menos importante que o trabalho de imaginação (pós-convencimento). A vontade de convencer, formar maiorias e unidades, e instrumentalizar os seres humanos em torno de uma ideia é tão importante para publicitários e profissionais de relações públicas quanto para os políticos, e essa vontade rouba espaço da atividade de imaginação, em nome do esforço de mudar a opinião do outro para mobilizá-los politicamente. Cada qual é livre para pensar no que quiser, mas eu só quero escrever e falar para quem já está preocupado em formar esse novo mundo, e outro desejo, um desejo concentrado em distinguir o que é seu, do que lhe é sub-repticiamente imposto (escapar à publicidade). Escapar ao capitalismo é resgatar o nosso desejo e buscar emancipar o desejo do outro da armadilha da necessidade capitalista, que nos seduz com a ideia de que a abundância, o desperdício e a ostentação são signos de riqueza, força e poder e que faz da sobriedade e da suficiência sinais de fraqueza, de impotência, de tudo quanto é indesejável. — Como convencer as pessoas do contrário? Como estar confortável para escrever para ninguém, para lançar garrafas ao mar esperando que alguém leia as mensagens que elas carregam? O que significa desejar para além do capitalismo? Essa é a maior utopia pós-capitalista, aquilo em que sinto que devo concentrar minha imaginação, mesmo que escrevendo para ninguém. Toda imaginação humana deveria hoje estar concentrada em imaginar uma resposta a essa pergunta: como conceber uma vida e uma forma de vida desejável num sistema de desejos e necessidades não-capitalista?
* Não é verdade que ninguém leva a sério o comunista, dois grupos muito importantes levam muito a sério essa ideia, e muitos outros grupos eu ainda poderia imaginar, os dois que eu tenho em mente em particular seriam os chineses e os bolsonaristas. Ou seja, a China e a extrema-direita. Minha tendência à utopia e minha crítica ao dogma da complexidade conferem tanta urgência às minhas perspectivas políticas que mesmo aquilo que há de inegavelmente valioso na experiência socialista chinesa me parece evitável, e por isso eu acho que precisamos ser capazes de dispensar, de saltar essa etapa e de passar diretamente a outra coisa! Precisamos saltar o socialismo, ir direto ao comunismo. — “Impossível, seu maluco!”, grita alguém dentro da minha cabeça!

