Antes da internet é quase impossível identificar algo que tenha modificado a história humana tão rápida e profundamente. Pouco mais de 30 anos se passaram como se tivesse passado 300. E dentro dessa curta história há ainda outro ponto de virada tão decisivo quanto o nascimento da própria internet. A internet nasce quando Tim Berners-Lee cria o protocolo do hipertexto, o HTTP, e o primeiro servidor a utilizá-lo. Nasce também quando é definida a sintaxe da linguagem de marcação com que os objetos seriam apresentados na web, no hipertexto, o HTML, e também o cliente deste servidor, o primeiro navegador. Naquele momento o HTML não tinham suporte nativo para arquivos de vídeo e de áudio, e o hipertexto era pouco mais que um texto (digital) turbinado.
Se a internet nos introduziu no mundo digital, o HTML5 por sua vez possibilitou o streaming, tornou leve e descomplicado transmitir áudio e vídeo na web. O HTML5 é o (já não tão) novo marco tecnológico que permite que as tecnologias embutidas no navegador possam apresentar áudio e vídeo, e assim controlar nativamente o fluxo de pacotes transmitido pela web, ou seja, sem auxílio de aplicações externas (do pesadíssimo Adobe Flash). E o mundo muda radicalmente de novo! Nesse segundo ponto de virada, outras duas mudanças colossais começam a se consolidar. A primeira é uma mudança civilizacional, a substituição do papel por dispositivos eletrônicos como suporte e tecnologia de armazenamento. Para o texto, o papel basta, mas para o hipertexto é preciso outra mídia, outro meio e suporte de armazenamento, precisamos de dispositivos eletrônicos. Assim, passamos quase desapercebidamente a outro paradigma civilizacional. Essa mudança tecno-antropológica é imensamente importante, ainda que pouco discutida ou mesmo percebida.
A segunda grande mudança é uma consequência dessas transformações tecnológicas, e diz respeito diretamente ao retorno da oralidade. A escrita e o texto são tecnologias secundárias, isto é, a maioria das pessoas aprende a escrever depois de aprender a falar. Falar é uma disposição natural, enquanto escrever é uma disposição cultural, uma tecnologia cuja sofisticação mal notamos de tão presente que está na nossa vida. Por essa mesma razão, Pierre Clastres lembra de uma determinação negativa que caracteriza as sociedades arcaicas: a ausência de escrita. No passado da humanidade, o nascimento da escrita, entendida como tecnologia, nos afastou da oralidade, da dependência da oralidade como forma de transmitir e armazenar informação. A sociedade digital resgata a oralidade antes indicativa de “retrocesso” e primitividade, sugerindo acidentalmente assim o caráter cíclico da história. A banalização dos computadores e das tecnologias de armazenamento — especialmente a dos solid state eletronics, Paul Ceruzzi tem uma seção inteira sobre essa tecnologia e seu Computer: a concise history — permite armazenar aquilo que antes estava condenado a ser levado pelo vento, as palavras ditas. Hoje em dia qualquer bobagem pode ser registrada em áudio e vídeo. E no Whatsapp qualquer um pode testemunhar o fenômeno antropológico que faz com que muito frequentemente a linguagem escrita seja substituída fácil e convenientemente por mensagens de áudio. Tudo isso se tornou possível porque a civilização mudou de paradigma quanto a sua principal tecnologia de armazenamento.
Mas voltamos ao que importa: o que surpreende nessa nova condição antropológica inaugurada pela sociedade digital é que num sentido muito importante ela seja um retorno, um “retrocesso”. Que ela mostre uma história não dirigida ao progresso e ao desenvolvimento, mas a um acidental retorno ao passado, como se assim pudéssemos ver a história como coisa não linear. A oralidade retorna pela mudança de mídia, quando as possibilidades de registro e armazenamento são quase infinitas; a oralidade retorna quando a nossa principal tecnologia de comunicação não é mais baseada no papel e no texto, mas no hipertexto, nessa infraestrutura de comunicação que permite não apenas o armazenamento massivo de dados, mas também a transmissão e apresentação desses dados desde qualquer ponto da rede sem maiores dificuldades. Que impacto o retorno da oralidade terá sobre a escrita nas sociedades humanas, a escrita que ainda é a tecnologia principal oriunda dessa antiga mídia, o papel? — Logo veremos! Ou já vemos? Ou já podemos notar seu efeito? Se somarmos a esse contexto a nossa tendência atual a usar modelos de GPT de Inteligência Artificial para sumarizar livros, é difícil não pensar no futuro ocaso da palavra escrita, ou coisa parecida. Mas talvez essa perspectiva seja apenas a sombria projeção de um pessimista. Em qualquer caso, a nova ascensão da oralidade é aquilo cientistas enchem a boca para chamar de fato. E nesse novo mundo precisamos de novo da voz, do sopro, não apenas na palavra escrita.
PS. O papel foi durante milênios a principal tecnologia de armazenamento da humanidade. Ele foi substituído, na sociedade digital, pelos dispositivos eletrônicos de armazenamento. Antes estes dispositivos eram eletrônicos híbridos, também mecânicos e magnéticos, agora, muitos deles são puramente eletrônicos. A história da computação é a história da evolução no uso de semicondutores em dispositivos de processamento e armazenamento de dados.