Um falso empoderamento

U

As safadas e as mulheres que tem um grande apetite sexual se tornam paradigmas da sexualidade feminina, pois pensamos muito sobre isso em termos de repressão e inibição. Naturalmente, as mulheres querem ser livres. Por consequência, se estabelece um paradigma de poder no âmbito sexual que se expressa como exibição e ostentação da sexualidade. Quanto mais livre eu sou, mais eu faço sexo e mais falo com naturalidade sobre o sexo e sobre a minha sexualidade. Às vezes o fazer sexo não é nem mesmo necessário, mas o falar sobre ele e o produzir discursos é imprescindível (lição foucaulteana). Como no caso de Angela Hayes, personagem de Mena Suvari, em Beleza Americana. A sexualidade se transforma em uma identidade, num avatar, em pura performance, máscara e teatro. Quando a naturalidade com o sexo se torna o signo de uma liberdade que todos querem ostentar no espaço público, então também começa a aparecer o interesse em fingir naturalidade. Fingir naturalidade para parecer cool.

Mena Suvari e Kevin Spacey em Beleza Americana

O papel da imitação na vida humana também se reflete na sexualidade. Dado que o paradigma da sexualidade livre é o dos homens, a suposta liberdade sexual feminina tende a se materializar em torno de ações que imitam a liberdade masculina. Assim, a sexualidade feminina se expressaria livremente no desejo sexual que faz frente à “suposta” insaciabilidade do desejo dos homens. No contexto da imitação, a busca pela naturalidade com o sexo, do estar à vontade com o sexo, leva ao endosso irrestrito e irrefletido ao desejo masculino. Enquanto as mulheres de grande apetite sexual — a la Bella Baxter — experimentam sua sexualidade plenamente numa promiscuidade altiva, num orgulho de ser puta desconcertante para muita gente, as que apenas fingem a naturalidade se tornam reféns do desejo dos homens ao pretender encenar o poder de uma sexualidade livre. O empoderamento que promove apenas um modelo do sexual é um falso empoderamento.

Emma Stone é Bella Baxter em Poor things, de Yargos Lanthimos

A ausência de um paradigma da sexualidade feminina e a força da imitação na cultura humana podem levar, entre outras cosas, a uma glamourização da promiscuidade como símbolo de liberdade. Como se a liberdade só pudesse se expressar como constante desejo de sexo, e onde falta o desejo ainda vigora a repressão e a inibição históricas. Desse modo, desaparece a possibilidade de compreender a performance sexual — seja ela atuada ou falada — como símbolo de escravidão e aprisionamento, pois ela se torna única e exclusivamente signo de liberdade. Assim, é como se não houvesse múltiplos paradigmas possíveis para a sexualidade feminina, mas somente um, estranhamente parecido e ajustado ao paradigma masculino.

Por tudo isso, sintomaticamente apareçam queixas, especialmente nas mulheres mais jovens, sobre o desejo masculino, sobre o efeito da pornografia, entre outras coisas. As mulheres que entendem que ser sexualmente livre significa emular integração e submeter-se ao desejo masculino, jogar o jogo desse desejo conforme suas dinâmicas, entram numa cilada. O contrário do modelo sexual masculino não é um modelo que inverte o sinal do desejo masculino e o atribui ao feminino, mas o desafio posto a cada mulher de encontrar sua própria sexualidade num mundo onde nenhum modelo até então foi permitido, o desafio de inventar a sua sexualidade. Esse é um desafio político, porque implica não a substituição da cultura sexual predominantemente masculina pelo paradigma sexual feminino. O desafio político consiste em negociar o desejo com o masculino e incorporar o resultado de maneira orgânica às práticas culturais, como pede o sexo; consiste em descobrir a expressão da sexualidade de cada um, para além dos modelos e paradigmas. Essa é a única maneira de usar o sexo como ferramenta de empoderamento.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos