Quando eu era adolescente os meus amigos insistiam em dizer que não existe amizade entre homens e mulheres. E ainda hoje essa parece ser uma ideia largamente aceita. O maior obstáculo à amizade entre homens e mulheres, ontem e hoje, é o desejo e a possibilidade do desejo. É como se as pessoas pensassem que o desejo envenena a autenticidade da amizade, como se a amizade fosse impossível onde pudesse existir também a atração sexual. Mas existe amizade desinteressada?
Toda a amizade é interessada e nenhuma está imune à possibilidade de ser reduzida uma mera relação entre meios e fins. Por exemplo, se você gosta de um amigo porque ele é rico e porque pode usufruir indiretamente dessa riqueza, em certo sentido essa amizade não está envenenada pelo interesse? Se podemos designar como envenenamento pelo interesse, apenas para ter um nome que usar, a circunstância em que uma pessoa se torna um simples meio em relação a certos fins desejados, deveríamos dizer que esse envenenamento não é exclusividade da relação entre homens e mulheres, e pode acontecer nos mais variados contextos e mesmo dentro de relações entre pessoas do mesmo gênero. As relações entre homens e mulheres talvez sejam um foco especial de suspeita em razão de uma tendência à misoginia nos homens. Ou seja, porque os homens não se interessam pelas mulheres, embora se sintam inescapavelmente atraídos por elas, a sua amizade pareceria quase sempre mascarar o seu real desinteresse, ou o seu interesse estritamente sexual. Mas que existam homens misóginos e desinteressados em mulheres não significa que a amizade seja impossível, não é certo?
A verdadeira dificuldade do potencial interesse sexual entre homens e mulheres é que ele ameaça transformar a amizade em outra coisa, isto é, compromete potencialmente a própria natureza da relação. Ainda assim, não impossibilita a existência da amizade. No fundo, é um inconfesso incômodo, ou a falta de naturalidade com o sexual o que torna suspeita essa relação. O sexual raramente entra no rol das coisas que somos ensinados ou treinados, de tal sorte que as possibilidades do corpo e do toque precisamos ser esclarecidas e aprendidas pontualmente, e não poucas vezes constituem pontos de tensão em torno dos quais circula a vergonha*. Os homens, que costumam sentir-se à vontade somente perto de outros homens, nem por isso têm desenvolvido qualquer tipo de desenvoltura no que diz respeito à afetividade — quem dirá quanto à sexualidade. E por isso não deixa de ser engraçado ver os memes que tratam da afetividade entre eles, porque embora algumas coisas tenham mudado, a afetividade parece ainda constituir um tabu e só se expressa se vier temperada com algo da onipresente violência masculina. Mesmo nos casos engraçados isso se deixa notar.
A possível confusão que a proximidade a um objeto sexual potencialmente desejável pode despertar não é um problema, a menos que a gente espere que a intimidade e a afetividade entre homens e mulheres esteja restrita às relações românticas. Grupos curiosamente heterogêneos advogam, mais ou menos ostensivamente, em favor dessa ideia. Homens abertamente misóginos e machistas, que não admitem que as mulheres possam se conectar afetivamente a outros homens que não sejam seus parceiros a menos que estejam interessadas em transar com eles (e que não admitem a irredutível ambiguidade de certas relações). E até mesmo uma boa parte das mulheres que, mergulhadas numa lógica competitiva e ansiosas por possuírem um troféu exclusivo (propriedade), se sentem ameaçadas pela proximidade de outras mulheres. Cedo ou tarde nós precisamos nos dar conta de que a vida é mais complexa que os próprios conceitos que herdamos, e é que nosso dever refletir, reformar ou abandoná-los, se for o caso.
A amizade entre homens e mulheres não é apenas possível, mas também necessária. Se somente a estabilidade de uma relação romântica for ocasião para que homens e mulheres aprendam a estarem à vontade juntos, é natural que isso não chegue a acontecer, por duas razões mutuamente vinculadas. Primeiro, porque assim se conserva a própria distinção entre amizade e amor, quando em realidade o que há de mais proveitoso na amizade é a possibilidade de aprender o que há de comum entre diferentes tipos de vínculos. Segundo, há uma consequente redução no número de oportunidades para aprender a construir uma desenvoltura entre gêneros se somente as relações românticas forem ocasiões para isso. Homens que não aprendem a amar e admirar mulheres fora de relações românticas podem nunca chegar a fazê-lo dentro dessas próprias relações; igualmente, mulheres que não aprendem a amar os homens fora desse âmbito podem nunca chegar a nos enxergar para além dos nossos estereótipos. Todos se beneficiariam igualmente se pudéssemos construir, desde cedo, a capacidade de estar à vontade perto uns dos outros e a amizade é o caminho dessa e de outras culturas que nos interessam.
* O contrário da vergonha é a explicitação e divulgação, pois tudo que é importante na nossa sociedade acontece nos termos da publicidade e dos meios de fazer circular uma ideia ou um valor. Então o combate à vergonha e ao decoro conservador, a libertação da sexualidade feminina e das sexualidades periféricas, dever implicar uma explicitação do sexo, como forma de naturalizá-lo, de torná-lo espontâneo e natural para as pessoas. A discussão sobre se isso funciona é muito longa e eu não quero tratar disso aqui, mas um dia eu quero escrever sobre isso. Por enquanto eu tenho a impressão — e é somente uma impressão — de que o filme How to have sex tem algo a dizer sobre o tema.