O último episódio de Electric Dreams é sublime e tristemente apropriado à circunstância em que nos encontramos no Brasil. É uma boa mostra do quanto a arte pode nos ensinar. O episódio também tem lugar durante uma eleição, a eleição do presidente do MEXUSCAN, um país fictício que engloba o território dos três países do norte num só. O cenário é futurista, como em todos os episódios da série. Vera Farmiga é a candidata em torno da qual tudo acontece e o personagem principal, Philbert, é o trabalhador de uma fábrica altamente robotizada. Salvo engano, só há três funcionários na fábrica. A medida que Philbert toca sua vida, enquanto acontecem os debates e entrevistas com a candidata (essa não se esconde!), pouco a pouco ele passa a ter a impressão quase delirante de estar vendo constantemente a mensagem “mate todos os outros”. Mensagem escrita, como em painéis publicitários, mas também falada, enunciada pela própria candidata. Ele pergunta aos seus amigos de fábrica e ninguém vê, ninguém sabe de nada, só ele. Até que num certo momento ele está parado no sinal e vê uma mulher sendo perseguida. Ele não entende aquilo, pessoas de todos os tipos, raças, cores perseguindo uma mulher como se quisessem linchá-la, o que poderia ter acontecido? Ele sai do carro e vai ajudá-la. E quando pergunta àquelas pessoas o motivo da perseguição, ouve como resposta “Ela é um outro!” Sem entender o absurdo dessa justificativa, ele evita que eles sigam agredindo a mulher e por isso um dos perseguidores diz: “Ele também é um deles”, um outro. Daí em diante ele mesmo começa a se questionar se é ou não um Outro, seus amigos passam a suspeitar que ele seja e o episódio segue essa tônica paranóica.
O importante disso tudo é essa conversão do “outro” numa identidade, num rótulo que pode ser aplicado a qualquer pessoa, sem nenhum critério*. E é exatamente essa plasticidade o que permite que o rótulo “outro” seja aplicada a qualquer um, tornando-se assim um instrumento de intimidação usado para coagir pessoas que não agem de acordo com os padrões do grupo. Quais são os padrões? Não importa, quanto mais indefinido melhor funciona. Se o rótulo for abstrato o bastante, vago o bastante, não importa as ações e comportamentos que caracterizam as pessoas que fazem parte desse grupo inimigo, pois assim sempre se pode moldá-lo de maneira a incluir novos tipos. Se a ação for vista como ameaçadora, a pessoa é imediatamente convertida em outro, isto é, ela é rotulada como parte de um grupo de pessoas com as quais não nos identificamos. O Outro passa então a ser um elemento de fortalecimento da identidade nacional na exata medida em que se identifica um inimigo comum contra o qual lutar. Um inimigo que une todas as pessoas, apesar de suas diferenças. Os Outros, esse grupo amorfo e sem características, é manipulável e por isso politicamente útil para fins de controle e dominação. Um dos muitos momentos brilhantes de Freud é quando ele desvela o que está por trás dessas dinâmicas de identidade que permitem agregar pessoas em grupos e dar a elas um sentido de união.
Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao fazê-lo. Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de permitir ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento.
Freud, O mal-estar na Civilização
Por meio da agressividade dirigida a um inimigo comum (mesmo que seja imaginário, como em 64 ou agora) se fortalecem os laços entre os indivíduos e é possível dirigi-los a uma guerra em nome da pátria ou do que quer que seja. Não é possível nem mesmo chamar esse tipo de estratégia de efeito colateral do identitarismo, ele é sua própria essência, só que aplicada num outro sentido. O identitarismo é uma estratégia de ação política.
De olho no poder, atores supostamente democráticos aceitaram circular a oportuna simplificação de que o PT é a causa de todos os males do Brasil. Apagaram as nuances para poder dar força simbólica a essa versão e afastar seus aliados da zona de perigo. Anos depois, a simplificação colou até o ponto de alimentar a maior identidade do país, o anti-petismo. O anti-petismo não é uma posição anti-corrupção — a maior parte dos partidos e políticos acusados de corrupção já declararam apoio a Bolsonaro —, é apenas o elo abstrato que une essas pessoas num rebanho e que lhes dá uma esperança de mudança, mesmo que essa esperança não tenha nenhuma razão de ser. É a identidade com que as pessoas serão instrumentalizadas a lutar contra o inimigo até que, muitos anos depois, percebam que as promessas em nome das quais foram mobilizadas eram na verdade um engodo. Só que então será tarde demais. Até lá, aqueles que apostaram nessa identidade a fim de criar as condições para poder dar vazão à agressividade e à violência que trazem dentro de si já terão matado e agredido muitos Outros e imposto o medo em nome de uma paz farsesca.
O Brasil está prestes a experimentar um novo tipo de medo, um medo inédito. Ao medo comumente experimentado em razão da falta de segurança nas ruas — que nunca será mitigado pelo incremento da violência e da vigilância — se somará o medo atroz da arbitrariedade autorizada pela eleição de um fascista (antes ao menos tínhamos ao nosso lado a certeza de uma ruptura institucional). Esse medo afligirá, sobretudo, os Outros, isto é, as pessoas cujo comportamento pode ser visto como inadequado pelos homens de bem que se sentirão autorizados, pela figura simbólica de um presidente, a julgar e executar qualquer ação que, segundo critérios arbitrariamente estabelecidos, comprometa a integridade da nação e dos valores nacionais. Essa é a receita da paz e da união do autoritarismo, o silêncio e a intimidação. Quem serão esses Outros?
* “Outro” deixa de ser uma palavra que designa uma diferença, a partir de uma identidade, para funcionar como o próprio critério negativo da identidade. Por exemplo, quando uso a palavra “corintiano” estou empregando uma identidade a partir do que identifico quem são os outros. Mesmo um conceito tão geral quanto “mulher”, cujos contornos são imensamente disputáveis, deixa ver um conjunto de outros que não fazem parte desse grupo e que, por assim dizer, se derivam dessa identidade. Portanto, no uso normal da palavra “outro”, é como se se estabelecesse primeiro o que está dentro do grupo (da identidade) e só depois os outros se revelassem enquanto tal. Nesse episódio a identidade do grupo nacionalista em questão se constitui negativamente, isto é, a afirmação da identidade não vem primeiro, pelo contrário. A identidade se constitui pela constante busca e identificação dos outros que não fazem parte do grupo e que, por isso, devem ser eliminados. Como a identidade é definida em negativo, por exclusão, as pessoas nessa sociedade vivem o constante terror de serem identificadas com o grupo inimigo. Um grupo que não tem nenhuma identidade, que é a pura arbitrariedade (o contrário da determinação) do ato de identificar o inimigo. E assim se instaura o reino da intimidação, do medo de ser identificado e perseguido como inimigo.