Duas coisas são especialmente difíceis de aprender (de saber imitar): fingir e tocar. Isto é, saber fingir e saber tocar. Porque saber essas coisas exige prática e sensibilidade. Em certa medida a função essencial da atriz, do ator, é fingir. Fingir até que sua atuação, seu fingimento, seja real. Seja real, não pareça. Aqui, a fronteira que separa o aparente do real, ou a fantasia do real, não tem nenhuma função. Essa fronteira é como um guarda que protege um cemitério de poetas, o que ele está fazendo ali? Guardando o quê? Em nenhum momento ninguém perde de vista a distinção entre a encenação e a vida não encenada (existe mesmo essa vida?), ou melhor, a diferença entre os dois jogos — mas isso não torna menos real a atuação da atriz. Ao considerar um extraordinário trabalho de atuação dizer que “Parecia real!” é muito pouco. Esse comentário faz lembrar o Real desidratado de uma parte substancial dos cientistas que sucederam Humboldt — “Era real!” e só. Não há nenhuma diferença que se deixe reduzir a verdades que poderíamos constatar. A diferença não é uma química cerebral, uma certa combinação de hormônios, nem tampouco um besouro dentro da caixa, ela é apenas a diferença entre esses dois jogos pragmáticos: estar atuando e estar assistindo uma atuação. Quando o ator é ruim, aí sim surge mais claramente a artificialidade da fantasia, do faz de contas, e a necessidade da distinção, porque percebemos “a moldura do jogo de atuar”, por assim dizer, e isso tira do espectador a capacidade de viver o Real de uma outra experiência por meio do trabalho dramático. É isso o que Nicole Kidman faz em Birth, ela nos apresenta o Real de uma possibilidade impossível. (Desculpem o erro lógico, às vezes é preciso errar para contar certas coisas.) Afinal, ninguém aqui acredita em reencarnação, né? Somos homens e mulheres da ciência, essa não é uma possibilidade para a ciência, é um impossível. Então o que faz o belíssimo trabalho de Nicole, vejam só, é nos brindar com o Real de algo que não é possível. Ela o cria enquanto atua, como uma demiurga.
Mas nem todo fingimento é dramático. Há o fingimento cotidiano, que precisa ser forçosamente aprendido. Para alguém que, como eu, tem pouco interesse pelas regras e jogos sociais, qualquer situação em que é preciso fingir meu descontentamento é um parto. E assim nascem os chatos. Mas a “moldura” também se deixa ver nessa vida supostamente não encenada, na vida real, no cumprimento obediente mas artificial das regras do jogo, nesse eterno acreditar naquilo que deve ser real. Os jogos sociais nos quais se encena a representação cotidiana da vida são entediantes e muitas vezes sem sentido (pois se tornam meros automatismos), mas é preciso fingir. Sorrir, concordar e calar. Sorrir, concordar e calar. Que arte, meu Deus, só mesmo sendo ator. Fingir para agradar, para reconhecer as dificuldades dos outros, para dosificar o quanto de você os outros podem suportar. Fingir é imprescindível, ainda que isso acabe tornando raras as experiências reais de abertura e espontaneidade. Aquilo que encontramos na amizade. Às vezes buscamos essas experiências nos livros, nos filmes, nos personagens que se mostram como pessoas reais porque não sabem que são observados (mesmo quando sabem!). Eles são livres para serem reais, sua realidade é uma das infinitas expressões dessa liberdade. E daí vem essa a coisa fantástica, a redenção literária de que Rorty fala, a possibilidade de entrar em contato e se familiarizar com uma grande variedade de seres humanos — e eu acrescentaria: seres humanos reais. Porque elas são reais num sentido muito importante.
Vocês veem que não sou exatamente responsável do ponto de vista ontológico, é que os guardiões e vigilantes do Real me dizem muito pouco. Às vezes passamos toda a vida sem nunca ter a ocasião de encontrar uma pessoa tão real como Aliocha ou Esther — cada pessoa tem certamente seus próprios exemplos. Somos o pouco que sobra, aquilo que ainda resta visível, depois que vestimos a armadura das regras que nos permitem coexistir em sociedade (o princípio da realidade). Não que sejamos uma essência que precede a existência, essa é apenas uma metáfora ruim (que tem sua utilidade). É difícil reconhecer, no mundo artificial das regras que instituem a normalidade, os sinais daquilo que ainda é real e autêntico, as pessoas perto das quais podemos deitar as armas e ser nós mesmos reais. A máscara adere ao rosto. Fingir é uma arte difícil, a maioria apenas acha que engana.
Outro dia escrevo sobre o tocar.