As plumas das asas da Vitória de Samotrácia

A

Boa filosofia se faz com qualquer formação acadêmica — ou mesmo sem ela, dicho sea de paso. Em Como se escreve a história, Paul Veyne faz um comentário interessantíssimo e muito estimulante:

É importante para um arqueólogo contar o número de plumas que existem nas asas da Vitória de Samotrácia? Será que ele demonstrará, agindo desse modo, um louvável rigor ou um excesso de minúcias supérfluas? A resposta seria impossível, pois o fato nada é sem sua trama; ele se torna meritório quando transformado em herói ou figurante de um drama de história da arte, onde se fará suceder a tendência clássica de não colocar plumas demais e nem se esmerar na expressão final, a tendência barroca de sobrecarregar e explorar os detalhes e o gosto que as artes bárbaras têm de preencher o espaço com elementos decorativos. 

Há dois propósitos mutuamente relacionados nesse comentário, o propósito de mostrar o que há de arbitrário no ofício do historiador e o de diluir a força objetiva daquilo que gostaríamos de chamar de fato. Ao subordinar o fato à trama, de responsabilidade do historiador, Veyne afasta este das contendas epistêmicas que reclamam a justificação para aquilo que reconhecemos como fato. Isto é, ele deixa de se perguntar pela realidade à qual corresponde o fato histórico sublinhado pelo historiador e passa a destacar o que há de quase demiúrgico no trabalho de criar uma trama. É claro que esse trama não se constitui ex nihilo, mas isso não é o bastante para que o trabalho do historiador seja reduzido ao de representar uma realidade (acaba, completa, fechada, estanque) que se deu.

Isso nos conduz à discussão entre verdade e sentido. O papel justificatório da verdade nos leva a perguntar pela realidade, por aquilo que é objetivo e que, sendo objetivo, justifica a afirmação de qualquer fato. “Justificar consiste em apelar para uma autoridade independente”, escreveu Wittgenstein. Entendida como coisa independente, a realidade justifica os fatos que afirmamos e só há uma realidade, não é mesmo? No entanto, se a verdade estiver antes subordinada ao sentido, uma perspectiva diferente se abre. O primado do sentido faz com que nem toda a arquitetura simbólica da linguagem esteja subordinada ao propósito de justificar. Portanto, nem tudo é independente. Trocando em miúdos, isso significa que a trama não é um mero resultado, uma mera consequência das verdades que podemos constatar, há alguma liberdade na fabricação dessa trama. Há (ou pode haver) incompatibilidades entre diferentes tramas (que são visões de mundo) de diferentes pessoas, ainda que existam elementos comuns que nós tendemos a reconhecer como verdades. Como é que podemos lançar um pouco de luz nesse pântano de abstração, ou seja, esclarecer a diferença entre pensar um mundo estruturado a partir de verdades e considerá-lo desde uma perspectiva na qual o sentido define a moldura por meio da qual enxergamos este mundo.

Em um artigo chamado O feiticeiro e sua magia, Lévi-Strauss relata o caso de um garoto acusado de bruxaria, crime cuja pena é a morte. O garoto cria histórias fantásticas para tentar escapar ao destino trágico e o tribunal encarregado de julgá-lo não tem um sistema de verificação como o nosso, orientado à verdade e aos fatos. Portanto, não deixa de ser algo surpreendente e quase incompreensível, para nós, o que acontece nesse tribunal. Lévi-Strauss descreve a situação assim:

O debate não procede por acusações e negativas como nossos processos, senão por alegações e especificações. Os juizes não esperam que o acusado impugne uma tese, e menos ainda que refute fatos; o que lhe solicitam é que corrobore um sistema do qual eles possuem somente um fragmento e cuja totalidade eles querem que o acusado reconstrua de uma maneira apropriada.

O propósito do tribunal não é encontrar a verdade, senão restituir a ordem simbólica perdida em função do ato cujo sentido não se compreende, pois não se ajusta a esta ordem. Por isso, uma vez aceito o relato do acusado, Lévi-Strauss diz: “o adolescente conseguiu transformar-se de uma ameaça para a segurança física do grupo em um garantidor de sua coerência mental”. Há nesse relato algo de imensamente perturbador, pois a determinação do que é real, embora não contorne aquilo que tenderíamos a designar com dados objetivos, não se orienta por um modelo de verificação de verdades. Isso significa que eles tem uma liberdade semelhante àquele que Veyne reconhece no trabalho do historiador, a liberdade de criar uma trama, de urdir um sentido.

Não tenho dúvida de que essa possibilidade provoca arrepios naqueles que não entendem (ou não querem entender) o efeito do primado do sentido sobre a verdade. Mas diante de tudo que representa o Big Data, isto é, da capacidade de gerar novas informações — e novos sentidos — a partir da identificação de padrões e regularidades em grandes volumes de dados, fica cada vez mais difícil defender a ideia de que fatos (verdades) antecedem as regras por meio das quais nós os fabricamos. O medo ao relativismo é antes de mais nada o medo à arbitrariedade, arbitrariedade patente nessa capacidade de reorganizar o sentido a partir de um novo olhar, mas o caso é que a vontade não pode ser excluída do âmbito da lógica. Não somos computadores cuja relação entre as regras e os casos de aplicação não passa por nenhuma psicologia (isto é, que não podem ter essa relação alterada pela historicidade do modo de aplicação). Portanto, ainda que pessoas diferentes inegavelmente partilhem elementos comuns (realidade não é o nome do conjunto dos componentes objetivos que supostamente articulam as diferentes visões de mundo?), temos a prerrogativa de criar, com alguma liberdade, o sentido da nossa própria experiência. Assim, a liberdade do arqueólogo mencionado por Veyne é antes de mais nada a expressão da nossa liberdade de criar sentido e de estabelecer até mesmo os padrões com os quais aferimos a verdade dos fatos.

PS. Na computação, o modelo lógico da relação entre regras e casos (instrução e execução, para usar uma linguagem mais apropriada) não envolve vontade (ou qualquer elemento empírico ou psicológico) e aí sim se pode dizer que há plena determinação, mas o modelo computacional não vale senão para a computação. Mesmo a máquina compreendida como ideal de determinação não está livre de interferências empíricas. Em breve escreverei sobre isso.

Atualização: Waismann tem um comentário muito oportuno (num artigo chamado Verifiability), por preguiça eu não o traduzirei:

In a language in which there is only the number series “one, two, three, a few, many”, a fact such as “There are five birds ” is imperceptible. 

Fantástico! Embora a ideia de que o fato seja imperceptível pareça sugerir uma sombra realista, mas isso não importa.

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