Salvador, Lisboa e o PDDU

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Salvador é muito parecida com Lisboa, inclusive topograficamente. Lisboa é uma cidade cheia de ladeiras, mas que ainda mantém bondinhos circulando, além de ter acrescentado ao sistema de transporte veículos mais modernos, VLT, como em Berlim e Barcelona. Em Salvador nós já tivemos bondinhos, mas eles foram asfaltados no final dos anos 60 pelo ímpeto modernizante do então prefeito designado pela ditadura, ACM (ele mesmo, o avô). No centro ainda é possível ver os fósseis dos trilhos, salvo engano, na Carlos Gomes e na Avenida Sete, perto da Praça Castro Alves. Sem bondes, Salvador agora é moderna. Na certa porque Lisboa é que é retrógrada. Um dia quando olharmos pra trás e contemplarmos a bela obra que o prefeito ACM (o Neto) deixou para os soteropolitanos — e o aplauso caloroso com que muita gente recebeu os paralelepípedos que ele pintou — vamos ter a mesma impressão de que fomos enganados. Neto e a equipe de paulistas que elaborou o projeto do PDDU (isso mesmo, o prefeito chamou uma equipe de São Paulo para elaborar o projeto, provavelmente porque não tem gente competente na Bahia pra fazer isso, certo?) parecem mesmo preocupados é em fazer crescer imensas paredes de concreto na cidade. Quando os paredões estiverem impedindo a visão dos pontos centrais da Cidade Baixa vocês me contam o que acharam dessa (como é mesmo a palavra?)… gestão.

Os dois mandatos de João Henrique foram simplesmente trágicos. Mas o maior dano que eles causaram à cidade, por incrível que pareça, foi ter incapacitado a maioria das pessoas de enxergar o que há de nocivo, conivente ou simplesmente paliativo nas ações do prefeito ACM Neto. Frente a tamanha incompetência e descalabro, até ACM Neto parece uma Ada Colau ou uma Manuela Carmena. Não que exista uma alternativa política em Salvador ao compromisso dogmático e irrefletido com a verticalização da cidade e ao descaso com o papel social do uso do solo. O PT no governo teria feito o mesmo, pois o objetivo dessas políticas, no fundo, não é o de expandir direitos, promover a cidadania dos moradores da cidade, tornar suas vidas mais confortáveis e incluí-los na dinâmica de crescimento da cidade. O objetivo dessas políticas parece o mesmo de sempre: favorecer empresários da construção civis e de outros setores — empresários que coincidentemente doaram (investiram?) grandes quantias para campanhas eleitorais de todos os partidos — enquanto as migalhas que caem da mesa onde é servido o banquete são alardeadas como enormes benefícios feitos em nome do povo. Não é em nome do povo e da modernização da cidade que o Mercado do Peixe foi posto abaixo?

Procurem nas fotos do centro de Lisboa prédio novos. Encontraram? Agora procure prédios novos que tenham mais de cinco andares. Encontraram? Se não encontrou é porque é difícil mesmo, são poucos e quase inexistentes. Há muitos telhados e construções antigas. Os prédios novos não estão no centro, porque o centro foi preservado. E a administração pública soube ordenar o espaço público de maneira a controlar as áreas de crescimento e determinar os espaços nos quais o garabarito de construção poderia exceder o limite do centro. A verticalização controlada é um indicador de planejamento e estratégia de crescimento. É um aspecto que, nas cidades planejadas, está consorciado também ao planejamento do transporte público, de sorte que as cidades diminuem a dependência do uso de carros e desafoguem o trânsito induzido pelo adensamento (quanto mais prédios e espaço comercial e/ou residencial, mais carros e mais trânsito). Mesmo a Parelela, uma região de Salvador que atabalhoadamente se transformou num foco de verticalização já não pode cumprir o papel estratégico de ser um canal de escoamento do potencial urbano, porque ela já está saturada. Mais prédios ali significará ainda maiores congestionamentos. O poder público precisa ser responsável, definir e criar condições para que novas áreas cumpram essa função. Além de organizar um sistema de transporte público de modo a substituir a inviável aposta num sistema privado de locomoção (carros, essa paixão nacional). Mas isso não pode acontecer enquanto a função da administração pública for simplesmente designar à iniciativa privada o papel de indutor e gerente do crescimento da cidade (a panaceia liberal: o mercado e a mão invisível resolvem tudo, resta saber onde esse conto de fadas é realidade). Como bem lembrava FHC (vejam só) numa entrevista à Piauí, o mercado sabe criar lucro, não valores. E a cidade precisa de valores. Salvador é uma forma de vida (com reflexos antropológicos, arquitetônicos, geográficos, culturais, musicais, etc.) que precisa ser preservada.

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