Aviso que já sei — e estou de acordo — de todas as críticas nietzscheanas a noções unificadoras e agregadoras como sujeito, alma e o escambau. Já até transcrevi aqui uma das minhas expressões preferidas. O que me interessa, agora, no entanto, é outra coisa, é a fofoca pseudofilosófica psicologizante. Estou falando das razões (ou não) à crítica ao autoconhecimento. Porque nisso, bem, nisso Nietzsche estava errado. Ou melhor, redondamente enganado.
Por que Nietzsche não percebeu que estava errado, como costumam fazer os homens inteligentes como ele? Eu entendo que Nietzsche, no imaginário de quem formou parte de sua personalidade folheando vez ou outra livros existencialistas (imensa classe!) ou de quem os escreveu, seja a realização mais bem acabada de um projeto de si. (Mas, repito, essa pode ser apenas uma impressão de um dos membros da classe.) Um sujeito capaz de criar, de alegrar-se e de não renegar a vida apesar de sua saúde proverbialmente debilitada. Autenticidade, essa palavra tão gasta, tinha a melhor expressão na figura de Nietzsche. (Não é curioso que não apenas Nietzsche, como também Wittgenstein tenham conjurado a influência como um fator negativo?) Surpreendentemente, acho que eles estão em parte certos. Embora eu não conheça a vida de Nietzsche, à parte aspectos gerais, acho que ele bem pode ter sido um sujeito capaz de criar em cada sentido, em cada milímetro do que lhe foi possível, para usar metaforicamente uma imagem espacial. O caso é saber se tudo que é importante pra constituição de um sujeito está acessível a esse sujeito que se constitui no tempo, assim eu suponho, em alguma fase da sua vida.
Ou será que essa capacidade para ser criador é inata? Duvido que Nietzsche, avesso a internalismos e essencialismos, respondesse assim. Ele responderia mais à maneira aristotélica, supondo uma capacidade que só pode ser uma disposição resultante do hábito (com todas as ressalvas à vontade anacrônica aí analogicamente mobilizada). Resultante da prática. Em Aristóteles é a prática que constrói a virtude e o próprio prazer resultante da ação virtuosa só pode vir como coisa secundária. Um inatismo criador anularia a própria virtude da criação e da capacidade criativa, que me parece só poder existir, como coisa a ser apreciada esteticamente, se ela for uma determinação própria e não uma determinação natural. É a liberdade que empresta beleza a tudo.
Suponhamos, hipoteticamente, que esse sujeito criador se constitui aos 14 anos. E tudo de importante que passou antes sem haver sido selecionado pelo forte crivo da autenticidade, da criação? E o tudo que seguiu marcando, lá no fundo, sem nunca ter sido questionado, sem a chancela da autenticidade criadora, reformadora, transformadora? Acho que é possível encontrar na vida de Nietzsche, encontrar no sentido paparazzi mesmo, algo que tenha escapado do seu horizonte. Algo que, estando sempre ali, nunca foi notado. A paixão existencialista pela autenticidade, que tantos herdaram, não foi capaz de enxergar o que seu fiador tampouco viu, que Sócrates estava certo, pelo menos nessa coisa: a verve da liberdade criadora não basta para constituir uma autenticidade plena, pois o fato de ser uma perspectiva histórica (e não natural, inata) já havia deixado passar, como ovelhas desgarradas, um sem número de eventos cuja dimensão pra constituição da nossa personalidade já não podemos avaliar — não porque nos seja logicamente impossível, é perfeitamente possível, mas simplesmente porque não sabemos o que procurar. E essa dimensão de elementos importantes e indetermináveis em sua completude [Borges diria son catorce (son infinitos)] só se mostra por meio do trabalho sempre inatingível do autoconhecimento. (Que não é, pergunto, também um trabalho ficcional?)
PS. Nietzsche é como pouco Lord Voldemort (ou Olavo de Carvalho, o que dá no mesmo), sempre que escrevemos sobre ele e jogamos o texto na rede, se espera uma enxurrada de críticas que não poucas vezes acabam em investidas contra nossos entes queridos 🙂
PPS. Esse tema é uma variação de uma perspectiva minha, vejam só, sobre uma perspectiva wittgensteiniana.
PPP. O texto desembocou numa perspectiva filosófica sobre o qual muita gente pode dizer, “ah, caiu no xxxxxxnismo, né?” Mas né bem isso, colegas? Prestenção!