O trauma do Cría cuervos

O

Não deixa de ser bonita, cândida até, a atitude de Cynara. Ela alerta a direita, falando em nome da esquerda (vejam só), para o risco de alimentar o PMDB (Eduardo Cunha e que tais). É bonito: como quando se contempla a simplicidade (deliberada ou não) de uma visão de mundo, como a de uma criança — mas ao mesmo tempo é sintomático.

Porque, bem, não foi a oposição, nem a direita, quem criou e alimentou esse corvo, como queria fazer passar Cynara. A oposição, pobre dela, é algo menos que insignificante. ACM Neto está sendo disputado a tapa pelo PMDB e pelo PSDB. ACM Neto, a únca coisa que restou do PFL. O PSDB, outra entidade em extinção, depende sofrivelmente de Alckmin e Aécio (Serra, FHC, é tudo velharia [com todo o respeito], ninguém pode nem mesmo cogitar, do ponto de vista lógico, que eles possam ter algum papel ainda que não seja o coadjuvante, né?). O que dizer de um partido que, completamente carente de ideias, dependente de Alckmin e Aécio, figuras da insipidez, — e de uma guiada oportunista para a direita — para sobreviver? Não, Cynara. Não foram essas figuras e entidades simplórias, dignas de pena, que criaram os corvos. Foi o próprio PT. O PT e sua ânsia para criar as condições de possibilidades para coisas que, em dado momento, ele já nem mais lembrava o que era. Essa ânsia tornou-se, como eu já disse antes (aqui e aqui), a justificativa pela qual os meios transformaram-se em fins. Pouco a pouco, a ideológica perspectiva segundo a qual é impossível tornar concreto planos e ideias constitutivas e características (do partido e da esquerda) sem abrir mão de uma dezena de outros traços constititutivos foi dando musculatura ao parceiro na construção material desse cenário. E quando, então, se considerou estratégias para fugir a esse cenário, para livrar-se da condição de refém, naturalmente, o gesto foi encarado como uma traição. E o governo Dilma foi torpe até o limite da torpeza na execução desses movimentos. Então, bem, sem mais delongas, não foi uma esquálida oposição quem alimentou os corvos que ora nos arrancam os olhos. É preciso não confundir a oportunismo da hiena com a ferocidade do leão.

(Se você pensar bem, o próprio fato do PSDB querer surfar oportunisticamente na disposição do PMDB em contrariar o governo é patética — e o José Roberto de Toledo já havia notado que, de tão esquálida e insignificante, o PSDB corre ingenuamente o risco de, nas suas palavras: “ver surgir uma terceira força em 2018”. Ora, o que faria um PSDB, que tem (timidamente, é verdade) aceitado ser a figura representativa (do ponto de vista político-partidário) dessa onda conservadora, se o PMDB resolvesse assumir o protagonismo dessa onda e não ser mais mero coadjuvante? É como se o verdadeiro herdeiro do trono aparecesse para reivindicar a coroa do bastardo. Seria derrota na certa. Fecha parêntese)

Em certo sentido, contudo, a imagem de Cynara é apropriada. Porque este não é (como ela quer) o alerta de alguém que está numa posição ideologicamente oposta a daqueles que andam ao lado e de braços dados com o PMDB, os corvos. Ela é traumaticamente a posição de alguém que tem autoridade para falar “não faça isso, pois nós fizemos e nos demos mal”. Veja então como é ridículo o intento de apagar tudo isso usando a dicotomia esquerda/direita. Assim sendo, o PT pode de fato dizer à oposição que não cometa o erro que ele cometeu, o de criar corvos, mas não pode, como Cynara faz cinicamente, tentar se eximir da responsabilidade (invocando a abstratíssima divisão esquerda/direita) pelos grandes corvos que agora alimentam a oposição com as nossas vísceras.

Atualização: Pra enfeitar o post: «Bloco na rua As principais lideranças da oposição e do PMDB discutem abertamente dois caminhos possíveis para deflagrar, já em agosto, movimento para forçar a queda de Dilma Rousseff. De um lado estão os que defendem a cassação da chapa Dilma-Michel Temer no TSE e a convocação de novas eleições em três meses. Do outro, o grupo que defende uma “saída Itamar”, com processo de impeachment contra a presidente. Nesse caso, Temer assumiria um governo de “repactuação nacional”». PMDB e oposição discutem duas vias para deflagrar queda de Dilma.

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