Pinheirinho e o legalismo

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Em Pinheirinho, como em outras ocasiões, reina uma confusão geral sobre a relação entre lei e prática, regras e ações. “Cumpriu-se a lei”, dizem alguns tentando justificar todas as camadas de lambanças e falta de sensibilidade. O cumprimento da lei, aqui, vira sinônimo de justiça — e o Estado não pode se negar a agir com justiça, certo?

Em grande parte do Estados Unidos, até 1967, um homem negro e uma mulher branca não podiam casar. Até então, qualquer impedimento legal ao casamento entre eles poderia ser respaldado pela mesma alegação: cumpriu-se a lei! Esse caso, como outras expressões que poderíamos indicar mesmo no nosso ordenamento jurídico, aponta para algo que escapa àqueles que julgam que a justiça se reduz à aplicação da lei: seu caráter dinâmico.

A lei cristaliza e institui práticas diretoras, reguladoras, sem as quais pensamos não poder construir uma sociedade justa. Mas as práticas que queremos ver aplicadas no cotidiano da nossa sociedade são mais fluídas, plásticas e dinâmicas que a elaboração e mesmo a aplicação das leis. Assim, pode bem acontecer que cumprimento de uma lei constitua, numa situação, uma afronta inaceitável a qualquer sentido razoável pelo qual se defina justiça. O legalismo é o refúgio de quem deseja se eximir (convenientemente) de pensar a justiça como articulação entre princípios e um contexto prático, histórico — claro, articulação orientada por leis, mas não inexoravelmente presa a elas –, de quem quer justificar ações injustificáveis senão por apelo a uma dimensão transcendental, absoluta, que não pode ser flexibilizada a não ser em prejuízo da justiça. O dogmatismo está quase sempre a serviço das forças obscuras.

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Há ainda um outro fator a se comentar: no simples dizer “cumpriu-se a lei” está refletido um conjunto de questões centrais que restam irresolvidas, a despeito da pujança da sexta economia do mundo. Só quem tem direitos são os credores da massa falida da empresa de Naji Nahas? Sim! Pelo menos é isto o que se pode considerar a partir das ações das autoridades públicas. O poder judiciário, como o poder executivo (em seus múltiplos extratos), negaram aos moradores seus direitos mais básicos: direito à moradia, à dignidade humana.

Não há nada mais sintomático do que o retumbante “cumpriu-se a lei” que atravessa, como se fossem invisíveis, os direitos de milhares de pessoas. Elas são invisíveis. O Estado apenas tratou-as como de fato as considera.

Em tempo: a entrevista de Raquel Rolnik, sobre o caso Pinheirinho, é imperdível.

Atualização: O vídeo da juiza que expediu a ordem de reintegração de posse é vergonhoso. A convicção dela lembra os relatos de Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. Dizer que a PM realizou um “serviço admirável” é se negar a aceitar (ou oferecer) qualquer critério razoável sobre trabalho e atuação desejável de uma polícia.

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