Contra o modelo unidimensional de Universidade

C
A PM e seu proverbial preparo para lidar com manifestações e movimentos sociais

Sem dúvida, muita polêmica cerca o debate sobre as manifestações e a ocupação de prédios da USP após policiais terem detido três estudantes que fumavam ou portavam maconha. No entanto, uma perigosa simplificação ronda a questão e ameaça esvaziar discussões importantes e indispensáveis não só à USP, mas a toda universidade brasileira. A má fé se manifesta já na maneira como a questão é apresentada: como se se tratasse tão somente de uma reação ao desejo de ver o consumo de maconha liberalizado na Universidade. Há sim estudantes empunhando essa bandeira e também interessados, mas reduzir as discussões a esse ponto é fazer um recorte conveniente no intuito de minar a credibilidade, de silenciar antes mesmo que os debates tenham principiado. É isso o que a imprensa tem feito sistematicamente — e como de costume.

Ora, uma vez colada a pecha de “maconheiro”, não há debate que não esteja de saída contaminado, basta ver o rancor dos comentários às notícias sobre o acontecido. Aliás, essa interdição produzida artificialmente pela seleção rigorosa da imprensa, também é reproduzida pelas autoridades públicas em todos os seus extratos. Quando os estudantes foram detidos e outros protestaram contra a prática pontual da PM e as ações sistemáticas que resultaram do acordo da USP com a entididade, o governador ou os representantes da Universidade não destacaram mediadores para dissolver os conflitos e dialogar com estudantes. A quem coube o papel de dissipar as tensões? À preparadíssima Polícia Militar de São Paulo. Parece expressão de quem quer dialogar deixar que a polícia resolva conflitos com estudantes? Não, parece uma estratégia bastante simples e quase infalível para recobrir a imagem de maconheiros com outra ainda menos querida: a de baderneiros.

Recusa-se a diálogo, reprime-se e então os estudantes são culpados? O alcance do uso retórico da expressão “maconheiro” ou mesmo da maneira velada como essa pecha é atribuída aos manifestantes e seus defensores não se detem no domínio estrito dos conservadores que endossam cegamente as palavras da Folha, do Estadão, da Veja ou da Globo, mas se enraiza e encontra abrigo na própria Universidade. Não sem razão, num dos textos publicados em favor das manifestações e das ideias convenientemente mascaradas pela grossa camada de simplificação, o professor Vladimir Safatle precisa fazer um apelo ao caráter produtivo das pessoas envolvidas no acontecimento:

Por fim, contrariamente a certa ideia que um anti-intelectualismo
militante gosta de veicular nestes momentos, vários alunos alvos de
balas de borracha são extremamente dedicados em seus cursos, participam
sistematicamente de colóquios e programas de pesquisa, apresentam
“papers” em congressos e podem ser constantemente encontrados em nossas
bibliotecas. Sendo certo que vêm de todas as faculdades de nossa universidade (e não
apenas da área de humanas, como alguns querem fazer acreditar), é
inaceitável tratá-los como delinquentes potenciais. Dentre os 2.000
estudantes que se manifestaram nesta semana estão alguns de nossos
melhores alunos.

É como se ele dissesse: “Olha, aqui também se trabalha e muito! As pessoas que estão sendo tratadas como vagabundos arruaceiros tem índices de produtividade tão altos quantos os de outras unidades da Universidade”. É uma certa concepção de Universidade que está aí em jogo (e um combate ao anti-intelectualismo, para usar a expressão Safatle). Será a produtividade a única chave pela qual medimos o impacto da Universidade, pela qual avaliamos os estudantes e professores que a compõem? A Universidade se esgotará nesse plano unidimensional no qual as pessoas são imediatamente enquadradas em compartimentos segundo a produção? Só é legítimo ouvir os melhores alunos, os produtivos. Para os “maconheiros”, a polícia? Tudo isso parece um forte indicativo do calculado desprestígio do pensamento, de uma maneira insidiosa e bastante eficiente de engessar o poder emancipatório da reflexão, de fazê-la coincidir não com o inútil, mas com o dispensável. Pois, apesar dos índices de produção, do que se produz nada tem uma aplicação notória e imediata dos produtos resultantes da aplicação dos saberes das áreas ligadas à ciência dura, às engenharias e tudo mais. Ou seja, apesar da produtividade, a queixa contra os vagabundos arruaceiros permanece, ainda que não pronunciada, no olhar desdenhoso dirigido aos estudantes e profissionais das áreas que não são capazes de contribuir diretamente, perceptivamente, para a constituição material da sociedade. Ora, se toda manifestação de pensamento, além de tudo, parece regularmente associada à transgressão de barreiras que muito veem como essenciais (a necessidade de policiar o uso das drogas, o contigenciamento sexual e temas semelhantes), não é de se estranhar que as Humanidades sejam vistas com reservas, como lugar onde desocupados, incapazes de produzir nada de significativo, cuidam de elaborar expedientes retóricos para justificar suas “bizarrices” (consumo de drogas, justificação de uniões homoafetivas, etc.). Quando se examina as consequências e os compromissos dessa maneira simplificada de abordar as questões que faz tudo orbitar em torno de um eixo ligado ao consumo de maconha, vê-se que há muito mais em jogo do que um primeiro olhar pode revelar  — e que não é trivial que as análises sejam feitas desse ponto de vista.

Em especial, ignora-se as deficiências que historicamente tem relegado aos estudantes um papel periférico no centros de decisões sobre os rumos da Universidade. Esse é um problema que não se restringe à USP. O debate sobre a relação entre a cidade (e os seus serviços e agentes públicos) e a Universidade também é omitido. E não sou eu quem pontua sobre tais aspectos, uma professora de urbanismo da própria USP é quem os destaca num texto nada menos que imperdível. Sem falar na pouca legitimidade, pra não dizer arbitrariedade, na escolha do reitor.

Assim, antes de apressadamente condenar os envolvidos, cabe compreender os aspectos mais profundos que animaram os movimentos, aspectos interessada e conveniemente esquecidos pelos agentes responsáveis por noticiá-los. Os muitos erros que podem ser atribuídos aos estudantes — dentre eles, na minha opinião (se esse foi o caso), o próprio consumo de maconha no campus — não justificam as reações e os erros das outras partes, das autoridades de quem se espera padrão e moderação nos procedimentos. Erros, aliás, que vem de muito antes do evento que foi o mero estopim de tensões que se agravam há tempos. Por fim, duas coisas precisam ser ditas: primeiro, posse de maconha para consumo próprio não é mais crime, segundo, como a Universidade e o governo que ela representa tem punido manifestações e manifestantes com expulsões (e essa é uma das demandas do movimento estudantil há algum tempo), os estudantes encobrem os rostos.

Ao meu ver, muitas das melhorias que buscamos para o nosso país, para a nossa educação, passam pela necessidade urgente de contornar obstáculos e interdições que condenam apressadamente ao silêncio certas figuras. Liberdade de expressão e pensamento não deve ser um direito exclusivo de uma imprensa que, em grande parte, vive de repetir fórmulas e ideias conforme seus interesses, mas deve se estender às pessoas que, ainda que digam coisas contrárias às nossas ideias mais axiais, trabalham ardua e sistematicamente na reflexão sobre esses temas. Aliás, a liberdade de expressão, que parece ser um privilégio da imprensa, veio para proteger o caráter benéfico e salutar do pensamento à democracia — e pensamento apenas em raras ocasiões coincide com o que circulam os grandes veículos de jornalismo.

Atualização: Um texto definitivo sobre os problemas que cercam a questão da segurança na USP: Autonomia seletiva

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