Por não ser jornalista, eu tenho alguma liberdade para escrever sem que minha credibilidade esteja vinculada à eficácia das minhas previsões. Os jornalistas costumam se prender excessivamente a um único critério, as vitórias, para avaliar o futebol. Por isso é tão comum ver engenheiros de obras prontas, especialmente quanto à seleção brasileira. Antes de iniciar um longo ciclo vitorioso, Dunga enfrentou muitos percalços. Mesmo assim, ninguém foi capaz de dizer com todas as letras as razões das dificuldades. Repetiu-se a exigência da saída do treinador, considerando não os aspectos técnicos que concorrreram para aquele futebol medíocre apresentado pela seleção, mas apenas as derrotas como o velho critério para avaliar a competência de Dunga. Tímidos quando fomos derrotados, paralisados desde que começamos a vencer. Ninguém se arrisca a analisar e criticar um time que está ganhando. Previsões negativas para a Copa do Mundo? Corre-se o risco da excomunhão. O torcedor costuma ser um bobo otimista. Eles não querem ver contrariadas suas expectativas. Os comentaristas de futebol, que não querem perder seu público, não o contrariam. Só posso acreditar nessa explicação para o silêncio retumbante que se abate sobre a classe de analistas diante do futebol que a seleção brasileira tem apresentado regularmente. As boas atuações, se é que podemos chamar assim, não resultam de um esquema técnico enraizado na forma do time jogar. São resultado da composição de boas atuações de figuras particulares. Quando alguns jogadores não estão inspirados, a seleção volta ao feijão com a arroz de sempre. É muito pouco pra um time que pretende o título.
Nós temos um problema histórico de criação. Não que não tenhamos peças para colocar nesse setor, mas as peças que sempre foram destacadas para a função não corresponderam à expectativa. Ronaldinho Gaúcho não é essencialmente esse homem, nunca foi, embora seja criativo e possa cumpri-la razoavelmente bem (não na seleção, claro). Quando penso em um meia criativo nato, estou pensando em figuras com a característica de Alex (ex-Palmeiras), Ricardinho (ex-Corinthians e hoje no Atlético-MG) ou, atualmente, como Ganso. Ou seja, jogadores que sabem fazer lançamentos curtos ou longos, mas que também sabem cadenciar o jogo, distribuir as bolas. Hoje em dia, veja como vai nosso meio de campo: Gilberto Silva, Felipe Melo e Ramires (no último jogo foi assim). Quando há mudanças, Elano substitui Ramires. É frustrante! Nos últimos anos o Big Bang tem ameaçado a presença de Gilberto Silva na seleção na escala dos eventos misteriosos do universo. Ninguém pode explicar um fenômeno semelhante. 4-4-2 deveria ser proibido no futebol, caso o técnico opte por 3 volantes. Quem cria as jogadas nesse time? Kaká? É muita responsabilidade pra uma pessoa só. E Kaká não anda numa boa fase. Quem apoiará os laterais? É preciso dois meias e dois volantes mais habilodosos. Até Anderson é melhor que Gilberto Silva, embora não possa ir. Eu não sou dos que acreditam que é preciso sempre haver um Dunga em cada time. Mas admito a possibilidade dessa ideia. Que deixem então o Felipe Melo. Um meio de campo dos sonhos seria assim composto: Felipe Melo e Hernanes, mais recuados, mas com liberdade para apoiar alternadamente, à frente, Kaká e Ganso, ou até Diego, sempre injustiçado na seleção. Esse esquema sim, nos ofereceria alguma independência das atuações individuais, porque iria preencher os espaços entre o meio e o ataque, apoiando os alas e dando condições para jogadas de linha de fundo. A escolha de bons laterais poderia fortabelecer ainda mais esse esquema. Aliás, a escolha dos laterais poderia determinar o tipo de jogo a ser feito: Daniel Alves, um esquema de ataque mais agressivo e rápido. Maicon pode ser ofensivo, mas é um apoiador mais aguerrido. Daniel Alves pode ser destacado até para a meia, como acontece às vezes. Assim o controle do jogo pode retornar às mãos do técnico. Uma ou duas alterações são capazes de provocar mudanças no curso de uma partida na qual elas sejam necessárias.
Mas Dunga não é o homem que irá implementar essa mudanças. Primeiro porque é incompetente, segundo porque não há cobrança. Mano Menezes, da mesma escola gaúcha de retranca na qual Dunga é formado, passou meses jogando com 3 volantes sem que ninguém, salvo alguns poucos torcedores conscientes, levantasse a voz para denunciar a estultice que culminou com a desclassificação do Corinthians. Quem joga como time pequeno, perde como time pequeno. As vitórias da seleção são como cortinas de fumaça que turvam a visão de quem quer ver os obstáculos à frente. Pelo andar da carruagem, quando pudermos ver os problemas, já será tarde demais. Para analisar futebol brasileiro, os pretensos analistas deveriam ter sempre em mente um aspecto: é preciso entender porque a seleção de 82 é idolatrada e a de 94 apenas mencionada. Entender o que se espera de uma seleção. É sim algo que envolve vitórias e títulos, mas também espetáculo e futebol brasileiro. Ou ainda: é entender o sucesso do time dos Santos. Mesmo alguns convictos defendores de Dunga tem os olhos radiantes quando falam do Santos. Por que não podemos esperar o mesmo da nossa seleção? Por que precisamos nos contentar com esse futebol burocrático, lento e pouco criativo cujo ícone se representa na figura de Gilberto Silva? Respeito ao trabalho alheio não se confunde com submissão incondicional. Criticar Dunga não é desrespeitá-lo. Entendo as escolhas do treinador, mas acho que elas não são suficientes para construir um caminho vitorioso e, especialmente, para representar a qualidade técnica do nosso futebol e dos nossos jogadores. Suas escolhas refletem o seu futebol, o estilo de jogo que ele quer, o estilo de jogo que DUNGA quer.
Convocação. Bem, um dia antes da convocação definitiva para a Copa do Mundo da África do Sul, meu palpite é que não haverá grandes mudanças. Dunga, como Mano Menezes, é um conservador, teimoso — só é capaz de aprender com a derrota e mesmo assim caso não se insista muito em denunciar seus erros. Se insistirem, ele volta com o mesmo esquema até sair vitorioso, pra provar que estava certo. Para esse tipo de pessoa, em primeiro lugar, suas próprias convicções. Mano se mostrou mais flexível (pros padrões dos retranqueiros), depois do primeiro jogo contra o Flamengo (mas tarde demais), escalou dois ao invés de três volantes. Eu não creio que Dunga seja tão flexível. Mas voltemos à convocação. Eu acrescentaria à lista os nomes de Roberto Carlos, Hernanes e Ganso. Neymar mereceria ir, mas acho que o futuro dele é tão promissor que vale a pena deixá-lo de fora nesse momento. A juventude é um período onde a falta de caráter é quase compreensível (embora muitos, como o próprio Ganso, não se enquadrem nesse perfil), mas eu temo que uma convocação agora daria a ele a certeza incontestável de que é o melhor jogador de todos os tempos. Isso não seria bom! Humildade é pra mim uma palavra costumeiramente vazia, mas uma coisa é ter a clara consciência de suas próprias qualidades, outra é agir como se tivesse todas as qualidades do mundo. A clareza vem com o tempo.
No final das contas, acho que a coisa permanecerá mais ou menos como está. Quero estar errado quanto à convocação e especialmente quanto ao esquema da seleção. É possível que nenhum adversário seja capaz de derrubar o time de Dunga — o futebol mundial anda numa mediocridade só. Mas eu não apostaria nessa alternativa. Acho que a nossa seleção, caso Dunga não resolva o problema de criação, cairá pelas próprias pernas. Curioso é que, as primeiras partidas da “era Dunga” foram marcadas por uma movimentação de encher os olhos. Hoje, os jogadores se arrastam em campo e mal se colocam para receber. Criação e movimentação podem fazer a diferença. Movimentação depende de treinamento e orientação, criação, das escolhas na convocação e da decisão de colocar os jogadores certos em campo. Do contrário, anotem, será mais um ano de sofrimento. E essa bola eu já havia cantando faz algum tempo.