A “liberdade” da imprensa

A

À simples enunciação das palavras fiscalização e controle se segue uma tempestade histérica precipitada por setores supostamente ameaçados. A história é sempre a mesma: a liberdade de imprensa é perturbada pelo propósito de criar dispositivos que possam limitá-la. Censura, ditadura, gritam alguns. Mas que espécie de liberdade é essa, avessa a qualquer controle ou fiscalização? Uma liberdade natural, eu suponho. Isto é, uma liberdade anterior à constituição do Estado. Aquela que só encontrava limites nas barreiras que outros agentes livres poderiam lhe impor. A liberdade civil, essa que fruímos dentro de um Estado de direito, é uma liberdade balizada, plenamente ajustada a mecanismos de controle e fiscalização. As restrições que tais mecanismos impõem, longe de serem prejudicais, correspondem às condições de manutenção da ordem na nossa sociedade, na medida em que regulam a pluralidade de interesses entre os diversos membros que a integram. Assim, não é fácil de entender o que quer quem prontamente se levanta contra a mera proposta de discutir meios de fiscalização da imprensa, se o receio de perder a “liberdade” é sua principal arma. Censura, como eu já disse em outra ocasião, é um controle prévio da expressão. Confudir fiscalização e censura é envenenar o debate, contaminando-o intencionalmente a fim de fazer valer uma posição.

O que furtivamente parece animar a recusa é o interesse de se resguardar de qualquer responsabilização. Liberdade e irresponsabilidade não se equivalem, é preciso que saibam. Aliás, quem nos lembra isso é ninguém menos do que ilustre ministro Gilmar Mendes, em contexto diferente (e favorável a ele), claro. Mas ainda hoje ele parece manter a opinião de que responsabilidade não pode ser separada da seara comunicativa, embora sugira outros meios de controle. O importante é aceitar a premissa básica: de que não há nada de antidemocrático em propor meios de fiscalização — ao contrário, a responsabilização é parte indispensável a democrática, é o fator que pode tornar a imprensa ainda mais democrática.

É preciso dizer ainda que a liberdade de imprensa não é um fim em si mesmo. Ela está à serviço da democracia, como tantos outros princípios. Por isso, na medida em que uma ação, a princípio abrigada sob a tutela da liberdade de imprensa, fere os valores democráticos, ela perde automaticamente a proteção que antes possuia. A democracia se estabelece por uma rede de princípios nem sempre harmônicos. No entanto, a harmonia é restituída pela prática judicativa no interior da ordem democrática, é ela quem distribuirá os pesos de forma a equacionar as diferenças entre os princípios. Sugerir que ações em princípio protegidas pela liberdade de imprensa se ajustam incondicionalmente à democracia, é dizer que nenhuma forma de expressão é antidemocrática, que nada pode ferir os valores de uma democracia. Militar contra a regulamentação é sustentar erroneamente o mesmo argumento.

Se alguma pergunta pode ser legitimamente dirigida à proposta de fiscalização que vem desde a primeira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos, ela é algo mais prática: que tipo de problemas se pretende sanar? Claro que respostas evasivas podem ser dadas, alegações de que é preciso criar preventivamente dispositivos para evitar futuras afrontas. Talvez. Mas considerando o desgaste político que vem junto com a proposta, se ela aparentemente não tem na mira nenhum problema real, por que sugiri-la? Há problemas muito mais concretos e igualmente desgastantes que não são nem mesmo sussurados, como a reforma política. É algo a se pensar.

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