Política sem medo

P
A crise do Senado passou sem que nenhum responsável fosse apontado. Alguns dizem que apesar disso ela trará mudanças significativas. Eu tenho minhas dúvidas. Só confio em profecias semelhantes quando elas vêm acompanhadas de previsões, ainda que imprecisas. Do contrário a afirmação soa como uma aposta que será esquecida caso não se cumpra ou relembrada como visionária caso se realize. Prever consequências é estabelecer relações entre elementos do presente e eventos futuros, sem que se apresente as razões que nos levariam das causas às consequências, tudo que temos é uma aposta — aposta, talvez, amparada por um senso de experiência ou por algum sentimento subjetivo de pouco valor prático, porque não público e portanto não operacionalizável.

Não vejo razões para acreditar que apesar da impunidade, a crise trará mudanças. Ao contrário, o horizonte da política brasileira parece estar povoado de elementos que nos fazem acreditar que estamos perdendo o frágil poder de levar nossos representantes a agir conforme nossos interesses. Mais do que isso: parece que estamos perdendo a capacidade de coagi-los a não agir em desacordo às nossas conveniências. Estamos em pleno domínio da política sem medo. Não se trata, obviamente, de um medo da violência, mas do receio e da hesitação diante da possibilidade de respostas, de reação. Grande parte dos políticos brasileiro — senão a totalidade — age tendo como referência a mera pressão eleitoral. Talvez seja ingenuidade acreditar que é diferente em qualquer outro canto do mundo, pode ser, mas em outros lugares o poder se recolhe ao simples aceno de uma mudança da opinião pública. Num país dominado estritamente pela forças eleitorais, se os políticos perdem o medo de agir contrariando a opinião pública é porque desacreditam a possibilidade de sofrerem respostas eleitorais. Talvez a regular e ininterrupta eleição de caciques e coronéis ao longo de décadas tenha fixado na cabeça dos políticos a ideia de que, no final das contas, importa muito pouco o que faz um político quando ele atingiu um certo status em seus domínios. No Nordeste inteiro, no interior dos estados — mesmo no interior de São Paulo, dizem conhecidos — o coronelismo grassa irrestrito. O curioso é que esses políticos se mantêm sem que haja uma contraparte  significativa, a relação que eles estabelecem com seus eleitores é como a caricata relação que se conta entre portugueses e índios, a troca de minerais valiosos e outros artigos de interesses por espelhos e trivialidades urbanas. Os eleitores brasileiros vendem muito barato o poder que conferem aos seus políticos.

Tudo isso é um preâmbulo pra anunciar uma segunda e sintomática ocasião para avaliar a destemida conduta dos políticos brasileiros: o caso da censura à internet no período eleitoral. Como se não fosse o bastante ignorar os abusos trazidos a público durante crise, nossos representantes sentem-se fortes o bastante para, pouco tempo depois, nos fazer engolir sem maior reserva uma censura explícita. Com o claro propósito de controlar as forças que desde 2006 já se desenhavam como determinantes para o debate eleitoral, eles têm se empenhado em fabricar amarras que condicionem o fluxo incontrolado da internet aos seus interesses. É um jogo de cartas marcadas onde qualquer oposição é meramente cênica. A proposta de controlar a internet é duplamente sintomática: reflete a falta de freios que é a própria expressão do esvaziamento da política — isso que eu menciono ao observar a falta de pudor nas ações que contrariam visivelmente o interesse público, mas também indica a enorme ignorância em que se amparam as ações dos nossos políticos. A censura à internet não é só um enorme ônus político, é uma proposta inútil e ineficiente para o que ela se pretende. Somente se não se compreende o que está no fundo das relações e dos mecanismo da internet se pode pretender censurá-la. É lamentável que nossos políticosm sendo insensíveis às demandas mais elemantares ao aprimoramento da nossa democracia, sejam também incompetentes para realizar seus próprios interesses privados. Quem não é capaz de realizar seus propósitos tampouco pode realizar o de qualquer outro.

As regras e possíveis modificações no texto que irá censurar a web em tempos de eleição serão votadas amanhã. Qualquer que seja o resultado, tomem nota, este blog continuará escrevendo sobre política como sempre fez. Mesmo que seja preciso migrá-lo para servidor chinês ou búlgaro, ainda que para escrever eu deva encontrar maneiras de burlar filtros, usar vias e canais criptografados. Não será o poder despótico e estúpido de poucos que me deterá — quando as possibilidades de fugir às barreiras são tão grandes e variadas. A abertura que a internet promove para a informação e o debate político ainda não foi inteiramente revelada, mas quem acompanhou pela web as eleições de 2006 teve um breve indício do que pode ser. Além disso, a eleição americana e mesmo a eleição do Irã nos dão conta de como as coisas podem correr. O caráter irrestrito da internet pode produzir males, mas já modificou certas práticas e modos de fazer política. Querer domesticá-la é apenas o gesto desesperado de quem se vê diante da possibilidade de perder o controle da maneira como as informações chegam ao público. Num país cuja prática saudável da parcialidade honesta se mascara com os véus da imparcialidade, a polifonia da internet é o melhor remédio e estou certo de que, com ou sem a permissão das autoridades públicas, e apesar ds exclusão da maior parte dos brasileiros, as pessoas mobilizadas no debate público pela internet conseguirão, no mínimo, emplacar suas pautas e forçá-los a discuti-las. No máximo, ajudar no aperfeiçoamente das ideias, na mobilização de mais pessoas para o debate eleitoral, na revitalização da política impulsionada pelo apelo sedutor que ela pode ter quando embrulhada no tecido das novas tecnologias e da novidade. Estou esperançoso, apesar de tudo. Quem sabe, ao final de todo esse episódio, consigamos reaver a consideração dos políticos (ou o medo deles) pela nossa opinião, na medida em que eles se vejam sujeitos a uma força que não podem controlar.

PS. Um agradecimento especial a Sarita Santedicola, que foi elevada — ou reduzida, vai saber — à condição de revisora oficial dos meus dislexismos. Que são muitos, vocês sabem.

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