A ilegitimidade do golpe em Honduras

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A banalidade que é preciso entender sobre o golpe em Honduras é que nenhuma Constituição prescreve a situação em que se legitima uma ruptura institucional. Isso porque uma Constituição é fechada em si, ela não tem nenhuma medida de justiça senão ela mesma, porquanto ela demarca o espaço de legitimidade dentro do qual operam os membros do judiciário. Portanto, há uma diferença significativa entre contrariar instruções legais e dissolver a ordem instituicional. Os papagaios que inutilmente tentam conferir legitimidade ao golpe mobilizam a intenção do presidente de convocar um plebiscito para legitimar a reeleição como pretexto para o golpe. É como se dissessem: “deflagramos um golpe antes que ele o fizesse”. Mas há um equívoco central nesse pensamento visivelmente rasteiro e ele diz respeito a diferença mencionada entre contrariar as leis e romper com o sistema legal.

Vale lembrar que quando a oposição*, aqui no Brasil, deu substância e vigor à voz minguada e solitária de algumas toupeiras que pediam mudanças na lei para permitir um terceiro mandato do presidente Lula, não se perdeu a confiança na atuação das instâncias judiciais compententes para desarticular a possibilidade de uma proposta insconstitucional. Não se propôs um contragolpe, porque numa sociedade minimamente estruturada as instituições são o bastante para desfazer as possíveis ameaças à ordem institucional. A Constituição cria seus próprios dispositivos para impedir que se lhe contrarie e o exclusivo emprego dos dispostivos e expedientes constitucionais é parte fundamental da própria ordem que ela institui.

A tentativa de legitimar o golpe é exatamente o oposto: pretende valer-se de expediente externo à própria lei. É o enorme paradoxo de convocar a suposta ameaça à ordem instituída para legitimar a destituição da ordem. Esse teatro é um mero jogo de luz para esconder os reais interesses que se encenam sob os panos: a velha rixa com o presidente da Venezuela. Algumas pessoas no Brasil não tem mais o que fazer além de criar picuinhas com Hugo Chavez. Tudo que ele apoia está errado — e se o Brasil por consequência e mesmo que acidentalmente se alinha à sua posição, viva!, vamos festejar a ocasião para lançar pedras no governo. Sergio Leo bem destacou um artigo do New York Times que mal menciona a participação do Brasil nesse episódio. A amplificação do seu papel é mais um capítulo de uma novela que já conhecemos (reparem a capa da Veja dessa semana).

As ações do governo brasileiro devem ser cuidadosas e pensadas, mas não há dúvida de que não se pode reconhecer o golpe e sua pretensa legitimidade. Como os hondurenhos liderão com as mutretas e manobras de Zelaya, essa sim é uma questão interna, soberana, relativa às instituições e que não pode ser resolvida sem elas, ao contrário do que pensam os golpistas.

* A mesma oposição que articulou a compra de votos a favor da aprovação da proposta de reeleição na era FHC. É bom lembrar, praqueles que só lembram de “mensalão”.

Atualização 1: Mauricio Santoro escreveu um bom texto exigindo do Brasil uma postura mais sóbria e conforme as normas internacionais. Muito bom, porque ele sabe do que fala. Mas ainda sim parece não reconhecer a dissimetria entre os erros de Zelaya e dos golpistas.

Se o golpe se estabeleceu como resposta à ameaça de atos ilegais, condicionar o retorno do governo legitimamente constituído à promessa de não praticar tais atos é incorporar a possibilidade do golpe no inventário de instrumentos legais (além de marginalizar as instituições, na função de guardiãs da legalidade do Estado). Eu asseguro que isso é muito mais perigoso do que romper normas internacionais que, convenhamos, ninguém respeita. A instabilidade política que isso acarretaria é muito mais danosa.

Atualização 2 : Sergio Leo e Clóvis Rossi escreveram textos muito interessantes sobre o caso. Eles expressam opiniões sobre as forças reais que animam as análises e toda a querela em torno da atuação do Brasil nesse episódio, vale a pena lê-los.

Atualização 2 : Élio Gaspari elogia posição do Brasil em Honduras. Excelente texto!

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