Certos homens cercam mulheres de maneira ambígua e indireta. Assim eles buscam duas coisas: incentivá-las a reagir ao seu comportamento, de sorte que a investida futura se torne mais segura, além de constituir uma rota de fuga. Ou seja, no final das contas eles buscam aumentar a segurança e diminuir os riscos, pois mesmo em caso de fracasso, quando as mulheres se cansam do assédio e resolvem por fim aquela conversa mole, a ambiguidade deixa espaço para eles digam que foram mal interpretados, e que a solicitude e a gentileza foram confundidas com interesse. Não sei se vocês já conheceram tipos semelhantes.
Em certas ocasiões, quando o humor é mobilizado com peça principal de um texto, a coisa segue caminho parecido. A superficialidade do tratamento não é menos impactante, contudo, ela guarda uma margem de segurança para onde é possível fugir quando as coisas não vão bem. É bem verdade — e eu já afirmei isso aqui — que há certas formulações caricatas e rasteiras envolvendo a discussão em torno dos problemas da imprensa no Brasil. Mas imaginar que tais tipos pretextam generalizações é passar com o trator da simplificação em terreno acidentado. Vejamos, por exemplo, uma, duas, três peças do pessoal do A Torre de Marfim sobre a questão.
Ali é dito que é da natureza da Folha abordar temas de forma provocativa e às vezes venenosa. Mas o PT fecha os olhos para os ataques do jornal contra a oposição. Tudo se resolve então na seletividade petista, parte da dimensão do problema consiste neste olhar enviesado. Noutra ocasião uma matéria da Folha é trazida a título de prova de suas pernadas aleatórias — e o humor segue temperando a história toda. Até que enfim tudo desagua na caricaturização de alguns movimentos que — apesar de ser justa, na medida em que de fato esses movimentos ganham feições grosseiras — obstrue a visão de problemas legítimos.
É óbvio que não se deve esperar “notícias inocentes”, embora nem toda a notícia registre a carga de um interesse forte. O que constitui problema não é que a Folha ou qualquer outro veículo de comunicação esteja comprometido com interesse próprios. Ẽnfases, destaques, recortes, são parte de um processo que é sempre perspectivado — a questão é: essa leitura não tem limites? A questão ascende a dimensão partidária e ganha status de um problema estritamente democrático. Se o PT ou o PSDB é o alvo, pouco importa. Se consideramos que há um limite, uma margem de manobra dentro da qual um certo modo de lidar com a informação é legítimo, devemos nos preocupar com as transgressões desses limites. “Mas quem vai determinar quais são as fronteiras desse espaço?”, esse é um problema secundário. É importante registrar isso, pois há sempre os que mobilizam obstáculos a fim de dissolver uma questão legítima. Se há problemas de determinação, eles não tocam a legitimidade da afirmação de que deve haver um limite para o modo como a imprensa coordena as notícias conforme seus interesses.
Se as soluções propostas não agradam a direita, bem, essa é uma questão a se discutir. Mas imaginar que o “liberalismo” é a solução — deixem que os veículos se regulem — é confundir liberdade com irresponsabilidade. E não há nada mais comum, quando se discute liberdade de imprensa, do que pensar que essa liberdade é ilimitada e que qualquer forma de balizamento é censura. É o tipo de contaminação que evita análises particularizadas a fim de instalar a discussão no campo das generalizações — no qual as simplificações operam com maior desenvoltura. Se se reconhece que veículos de comunicação — ainda que indistintamente — torcem os fatos por qualquer razão que seja, então o problema de delimitação é legítimo, e sublinhar que haverá sempre alguém que enxergará distorções não é argumento contra a proposta, pois que uma determinação completa e inequívoca jamais poderá ser produzida.
Nossos jornais podem ter opiniões, ideias, interesses, ideologias, o que parece inaceitável é que a liberdade política aliada a malícia de pensar que “não há notícias inocentes” seja uma espécie de salvo conduto para toda sorte de comportamento. Inaceitável é imaginar que — porque tudo pode ser enquadrado como instrumentalização política, na medida em que ninguém quer ver seus interesses contrariados — devemos abrir mão de critérios e ferramentas para identificar excessos. Liberdade e responsabilidade caminham juntas. Tomar a fragilidade de certas propostas com pretexto pra anular o debate é uma posição tão criticável e simplória quanto as propostas visadas — ainda que com alguma sofisticação o humor preserve as rotas de fuga com as quais se pretende escapar das críticas.
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Agora, Sergio que me desculpe, mas se alguém que aceita voluntariamente ser entrevistado diz que teve suas palavras recortadas de forma leviana, eu não vejo razões para desacreditá-lo (e desacreditá-lo objetivamente só pode consistir em comparar o que foi dito com o que foi publicado). Ele poderia simplesmente não ter concedido a entrevista. É claro que tudo que diz respeito a uma futura candidata a presidência nos interessa (embora a gente possa sempre discutir se a Folha tem se interessado com o mesmo entusiasmo pelo passado dos outros candidatos), mas não dá pra bancar uma de ingênuo diante da manchete do jornal — “Grupo de Dilma planejou seqüestro de Delfim Neto”. Se a relação entre o planejamento do sequestro e a candidata fica clara no conteúdo da reportagem, na manchete ela tem outro teor. Ainda que não se discuta as distorções denunciadas pelo entrevistado, imaginar que o conteúdo da reportagem redime o tom da manchete é de uma ingenuidade inclassificável. Em 2010, quando os poucos que leram a entrevista já tiverem esquecido o seu conteúdo (mesmo pressupondo que
não existiram distorções), a manchete figurará nas campanhas da oposição com a mesma força que tem hoje, isto é, insinuando explicitamente um laço psicológico entre a candidata e o sequestro.
E não adianta ressaltar que ela efetivamente fez parte do grupo, a relação travada na manchete é bem mais simples e por isso mesmo mais danosa. A acusação de que a entrevista foi recortada convenientemente só agrava uma situação que começa errada já na manchete. Imagine que alguém simplesmente leia o título da entrevista, que opinião essa pessoa teria de Dilma e de sua participação no planejamento? Talvez, diante disso, alguém pudesse objetar dizendo que não pode ser responsabilizado pelas conclusões apressadas do leitor. Mas ora, qual pressa? Inferir a relação estreita entre Dilma e o sequestro não é nenhum tipo de equívoco, é apenas trilhar o caminho ambíguo aberto pelo jornal. Se a relação se esclarece ao longo da reportagem, então não se pode dizer que a ambiguidade da manchete foi sem propósito.
Quais as consequências disso? Subestimar os efeitos de gestos aparentemente menores é conveniente, mas ninguém está propondo um movimento ou discussões como resultado de um evento isolado. Há uma continuidade, uma frequência, e um desinteresse em considerar o resultado de certos “descuidos” da imprensa no tratamento de certas questões. O que aparece menor pode ganhar maior peso em outros contextos, a questão é: por que, se se sabe a verdade sobre as relações, não eliminar as ambiguidades que podem servir de instrumentos em contendas políticas futuras? Se restasse dúvidas sobre a real participação de Dilma no episódio, talvez fosse válida a ambiguidade assim conservada, mas em não havendo, qual é o sentido desse fio solto?
Não vamos passar o trator por cima das coisas, talvez algumas formulações do problema geral da imprensa não estejam adequadas, talvez alguns episódios existam por mero sentido de paranóia de certas pessoas engajadas com ideias ou partidos, mas não dá pra eliminar com isso todo um campo de problemas de enorme interesse democrático — não vale também convocar o cenário de outros paises. Nós temos nosso próprio contexto e ele não permite ser reduzido à forma de outros.