O maravilhoso mundo das ideias

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Eu me sinto um completo idiota quando leio advogados defendendo a indefensável decisão do STF com os seguintes argumentos:

Blog – Qual a sua avaliação sobre a decisão do STF? Quais serão os efeitos imediatos?

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – A decisão vem ao encontro da presunção de inocência, constante da Constituição. Não vejo nenhum efeito imediato, a não ser para impedir a expedição de mandados de prisão antes do julgamento final. A decisão do Supremo, na verdade já vinha sendo adotada por vários Tribunais e Juízes, embora outros não a seguisse. Agora o Supremo pos fim à polêmica.

Ou então esses:

Blog – Qual a sua avaliação sobre a decisão do STF? Quais serão os efeitos imediatos?

Flávia Rahal – A decisão está corretíssima porque faz valer o princípio da presunção da inocência, estabelecendo que nos casos em que o acusado responde ao processo em liberdade, ainda que condenado, ele só será preso quando a condenação tiver transitado em julgado e for, assim, definitiva;

Blog – A decisão vai estimular a impunidade ou garantir maior direito de defesa?

Flávia Rahal – A decisão, não há dúvida, garante maior direito de defesa na medida em que reconhece que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de decisão condenatória, nos termos expressamente previstos em nossa Constituição da República.

Eu nunca entendi porque as pessoas teimam em empregar termos como “ciência jurídica” e afins. Argumentos da espécie acima reforçam meu embaraço. Faz anos que a ciência conta com um mandamento simples que reza o seguinte:

Não multiplicar as entidades além do necessário.

É a navalha de Ockham (ou Occam, como queiram), um princípio econômico claro que já fez prodígios pela ciência. No Brasil, parte do judiciário parece pensar o contrário, pois quando um advogado defende que a decisão de tribunais de instâncias inferiores às cortes que podem sentenciar definitivamente fere a presunção de inocência, eu só posso concluir que nós temos uma penca de instâncias ociosas obstruindo as tramitações judiciárias, comprometendo a celeridade da máquina jurídica, enfim, em evidente contradição ao princípio econômico que resguarda o processo da complexidade excedente. Eu poderia imaginar que alguém fosse capaz de responder satisfatoriamente a minha objeção — sem me fazer perder tempo –, se existissem critérios claros para concessão de recursos — contudo, não há realidade mais óbvia em nosso país do que o mangue, a farra, a zona dos recursos protelatórios. Eles são as peças mais importantes do judiciário brasileiro, sobretudo para os endinheirados que podem empurrar seus processos ad infinitum, numa festa de chicanas. Pimenta Neves que o diga.

Sobre o tema o ministro Joaquim Barbosa — o único em quem confio naquele Tribunal — declarou:

No processo penal, o réu dispõe de recursos de impugnação que não existem no processo civil”, observou ainda Joaquim Barbosa. Segundo ele, em nenhum país há a “generosidade de HCs” existente no Brasil.

Ele disse, a propósito, que há réus confessos que nunca permanecem presos. E citou um exemplo: “Sou relator de um rumoroso processo de São Paulo”, relatou. “Só de um dos réus foram julgados 62 recursos no STF, dezenas de minha relatoria, outros da relatoria do ministro Eros Grau e do ministro Carlos Britto”.

O leque de opções de defesa que o ordenamento jurídico brasileiro oferece ao réu é imenso, inigualável”, afirmou. “Não existe em nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção. Portanto, se resolvermos politicamente – porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir – que o réu só deve cumprir a pena esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão”.

No Brasil há uma legião de habitantes do maravilhoso mundo das ideias. Pessoas comprometidas com “garantias constitucionais” que há tempos já foram pro esgoto. O que elas não entendem é que a igualdade é essencial à realização da justiça. Quando as vestais do “Estado de Direito” berram em indignação comovente quando gente como Daniel Dantas é presa, embora não façam caso das violações cotidianas a que a população pobre está submetida, o que eu diviso não são aguerridos defensores da democracia, mas ganaciosos oportunistas dispostos a encher seus bolsos sob o manto de bandeiras democráticas. Gente que pratica a tão afamada indignação seletiva. Não devemos negar direitos e recursos a Daniel Dantas por que a maioria da população não pode dispôr deles, mas não temos o direito de falar de “garantias constituicionais”, Justiça e coisas semelhantes antes de podermos promover um aperfeiçoamento do aparelho judiciário, e antes de termos atingido níveis satisfatórios de distribuição de justiça. Em qualquer outro caso será sempre e mais uma vez a velha indignação seletiva mobilizada em prol dos interesses dos mais bem assistidos. Indignação praticada por sujeitos instalados no mundo das ideias, que articulam princípios abstratos — etéreos — o bastante para fazer esquecer a realidade a qual tais princípios se opõe flagrantemente, em contradição. Princípios que, mesmo sendo legítimos, não o são incondicionalmente pois têm sua legitimidade condicionada a uma cláusula simples: a de que estejam ao alcance de todos e não apenas de uma minoria privilegiada.

Eu quase esqueci: os papagaios se apressam em protestar quando o Brasil assume uma posição que destoa do resto do mundo. Nesse caso, conforme muito relatos, o Supremo contraria tendências mundiais e assume posição inversa. Vamos ver se haverá hombridade para manter a coerência crítica ou se os papagaios de modelos internacionais adotarão a habitual política do “dois pesos, duas medidas”.

Atualização – Opinião do juiz federal Sergio Fernando Moro:

Blog – Qual a sua avaliação sobre a decisão do STF? Quais serão os efeitos imediatos?

Sergio Fernando Moro – A minoria vencida no julgado apresentou bons argumentos jurídicos contra a tese vencedora. O efeito imediato da decisão é beneficiar apenas acusados que podem sustentar demandas até o STF, inclusive estimulando recursos meramente protelatórios. Sem execução provisória, é improvável que ações penais já julgadas, mesmo em duas instâncias, às vezes com acusados confessos, em relação a crimes de colarinho branco, incluindo as relativas aos grandes escândalos de corrupção e econômicos vivenciados pelo Brasil nos últimos tempos, cheguem a outro final que não o reconhecimento da prescrição. Entre eles, o Caso Banestado. Ou seja, teremos mais morosidade, mais impunidade e mais desigualdade, com proteção máxima a acusados por crimes de colarinho branco, para os quais o sistema não é minimamente eficaz.

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