A minha inconformidade, até raiva, com o delegado é que no fundo quem deveria estar na cadeia hoje fica rindo disso tudo. Ele terminou favorecendo a impunidade. Eu quero o Dantas na cadeia, mas dentro da lei.
As palavras do deputado Raul Jungman marcam um cinismo muito difundido entre as autoridades públicas. As irregularidades controversamente presumidas são transformadas no principal obstáculo à condenação de Daniel Dantas. Assim, mascaram-se aspectos importantes. Primeiro, consideremos: mesmo quem não aceita as relações que eu estabeleci entre os interesses de Dantas e o comportamento e declarações de políticos e magistrados, concorda que a configuração das nossas leis produz anomalias que oferecem aos ricos oportunidades interditadas aos mais pobres. A história do Brasil registra esse desnível até os dias de hoje e nada é mais evidente para quem visa as decisões das altas cortes por aqui. O cinismo vazado nas palavras de Jungman transforma um capítulo da história secular do judiciário brasileiro, numa ocorrência causada pela atuação repreensível — até o nível da revolta, como se vê — do delegado. Em outras palavras, o cinismo corresponde a tentativa de criar um bode expiatório para as ações e declarações das autoridades. Como se as irregularidades insinuadas pudessem nos fazer esquecer as regalias e privilégios disponíveis aos ricos e poderosos e, por consequência, a combinação de interesses públicos e privados.
A segunda coisa mascarada, e de certo modo relacionada à primeira, é a dimensão apropriada das investigações sobre Satiagraha. O impacto das investigações é amplificado a fim de que possa melhor se encaixar na tese conspiratória de que a atuação da Polícia Federal foi a causa verdadeira do novo episódio de impunidade em que Daniel Dantas está envolvido. Talvez devamos estimar como positivo esse novo contexto. Nas ocasiões anteriores em que Dantas saiu incólume nem se deram ao trabalho de forjar expedientes dessa natureza. Se agora eles se preocupam em dissimular é porque algo de novo se deu.
A natureza da investigação sobre Protógenes, já foi dito, é estritamente administrativa e mesmo se fosse de outra maneira não estaria explicada a ênfase que se tem dispensado a ela. A operação destinada a desarticular o poder de um dos mais poderosos agentes corruptores do país (imune a inúmeras investigações anteriores) é o tom — e todo o resto, trivial. Se não tivéssemos pessoas e instituições capazes de avaliar o procedimento da Polícia e, portanto, de regular sua atuação, talvez pudéssemos entender o motivo da atenção exacerbada dirigida à operação. Como não é o caso, é de se estranhar. Então, como justificativa, foi lançada a tese de que atuação dos agentes policiais (e mesmo do magistrado envolvido na operação) ofereceu à defesa facilidades — como se Daniel Dantas já não tivesse facilidades o bastante no STF. Ventilou-se até o risco de anulação do processo. Balela! Voltamos assim ao princípio cínico mencionado. A bizarra inversão que tem conduzido a “opinião pública” a prestar maior atenção à investigação sobre os procedimentos dos agentes da polícia do que aos desdobramentos da operação é explicada pela pressuposição da tese de que impunidade já prenunciada será causada não pelos estreitos interesses entre políticos, autoridades e Daniel Dantas (que explicam a morosidade das antigas investigações e a absolvição em tantas outras), mas pelo procedimento irregular dos envolvidos na operação. Repito, é daqueles terríveis indicadores que só o Brasil é capaz de produzir essa preocupação inédita em dissimular o que antes era escancarado. Mas a dissimulação é grosseira, fere a inteligência de qualquer pessoa capaz de enxergar o que desde sempre esteve errado em nossas leis e suas consequências. Imaginar que a impunidade tem um novo vetor é fazer pouco caso da inteligência alheia — coisa muito frequente em se tratando de parlamentares.
Curioso é que na mesma matéria da qual foi extraída a declaração de Raul Jungman, somos informados que o próprio deputado do PSDB, além do deputado Marcelo Itagiba, do PMDB, teriam recebido doações de R$ 30 milhões de um alto executivo do Opportunity. Questionado sobre a doação, Jungman declarou que ela não invalida sua participação na CPI que investiga os vazamento da operação Satiagraha (embora ela mesma seja fonte de vazamentos). Mas é claro não invalida, quem haveria de questionar a lisura do comportamento do deputado. Só a presença da possibilidade de contaminação de interesse públicos e privados alimentaria insinuações semelhantes — e essa possibilidade, todos sabem, deve ser previamente afastada.
A política no Brasil segue no mesmo ritmo de sempre.