Se há uma coisa comum em todo Brasil é a intimidade entre o público e o privado. Em todo país os dois setores conformam uma unidade de interesses que exclui dos seus domínios a opinião, demanda e necessidades da população, como se houvesse dois planos inteiramente independentes e como se o setor público não tivesse o dever de buscar o bem-estar coletivo. Vejamos então dois casos exemplares.
Primeiro:
Após o incêndio em Diadema o prefeito declarou que a indústria química instalada numa área residencial estava perfeitamente regulamentada. Disse ainda que o município tem Plano Diretor e que para uma cidade industrial é inevitável a convivência entre conjuntos urbanos e industriais. Pra que serve então o Plano Diretor?
Esse caso ilustra o costumeiro tratamento que recebe o interesse público no Brasil. Os Planos Diretores que deveriam fornecer diretrizes para orientação de projetos de ocupação do espaço nos municípios se transformam em meros expedientes para regularmentação (oficialização) das relações interessadas entre o setor público e privado. De um lado as prefeituras, de olho nos rendimentos que acompanham as obras das empreiteiras — além, é claro, da simpatia dos empresários do ramo, generosos doadores em tempo de eleição. Do outro, empresas de construção civil, interessadas em lucrar, mas pouco atentas para os efeitos de seus projetos para a vida social do município.
Em Salvador não foi diferente. O episódio da aprovação do PDDU foi vergonhoso. Qualquer um que ande pela cidade pode notar suas consequências: a explosão incontida da obras cujo impacto social dificilmente foi avaliado de forma apropriada. Para se ter uma ideia dos interesses envolvidos, correu a notícia de que a secretária de Planejamento da cidade (uma das principais articuladoras do PDDU) descumpriu determinações judiciais e levou adiante obras embargadas. No currículo da secretária também consta a acusação de ter autorizado a demolição de um terreiro — não sei como anda o processo. O interesse publico é mascateado vergonhosamente em benefício de partes que não fazem caso das demandas da população e da subsistência da cidade como um organismo que requer cuidado constante para não estancar numa dimensão insustentável. As vias urbanas de Salvador tem 4 ou 5 anos de limite. Se nenhuma medida for adotada nesse tempo, na falta de estudos e aplicação de projetos de escoamento dos carros que andam pelas ruas (e crescem em proporção assustadora), o colapso será inevitável. A melhor solução deveria começar com um Plano Diretor responsável, seguido de um estudo implementado em regime de urgência. Nada disso aconteceu. A cidade cresce ao sabor do vento e só a sorte pode nos livrar de um futuro que compremeterá não só a vida cotidiana dos moradores, mas a própria viabilidade financeira do município. Cabe lembrar do recente caso da Vila Abrandão cujo desenrolar testemunha o afã dos interessados em lucrar com uso do solo, cegos para qualquer aspecto social que obstrua seu interesse. Até o presidente Lula, que recentemente visitou a cidade, foi mobilizado para tentar interceder pelos moradores da região.
Em São Paulo a coisa caminha no mesmo ritmo, é a notícia que chega através do blog de Denis Russo Burgierman. O Plano Direitor é tratado como uma grande projeto de captação de recursos, a despeito do interesse social em regulamentar a ocupação do solo. Além do próprio post do Denis sobre o assunto, convém ler também, no mesmo lugar, os comentários das pessoas que participaram das discussões sobre o Plano na Câmara de São de Paulo. É vergonhosa a forma como elas foram simplesmente atropeladas e ignoradas.
Segundo:
Eu gostaria de ter escrito sobre o episódio assim que ele aconteceu. Antes que eu pudesse cumprir meu propósito meu xará escreveu um texto muito interessante sobre a onda de solidariedade que comoveu a parte mais abastada da população a reagir contra o “Estado Policialesco” que encarcerou indevidamente a dona da Daslu. E-mails circularam pedindo a libertação da empresária (que já foi solta). Free Eliana, eles diziam.
Moderado como sou, eu chego a considerar a possibilidade de que a prisão tenha sido efetivamente indevida, embora eu não consiga entender como o fato de um recurso ainda ser cabível deveria impedir que um juiz de primeira instância apresentasse um pedido de prisão, conforme a sentença. A pergunta que intriga é: o que torna a dona da Daslu diferente de todas as outras pessoas que eventualmente sofrem com decisões indevidas a ponto de o presidente da OAB-SP sair em sua defesa, criticando a atuação de outro magistrado? Procurem, no mesmo portal, notícias relacionadas ao presidente da OAB-SP. Nada semelhante será encontrado. Aliás, a figura do presidente só é familiar porque ele foi um dos notórios membro do “Cansei”.
Se a mulher precisa de cuidados médicos, que ela receba. Mas também têm esse direito as milhares de pessoas abandonadas em condições sub-humanas nos presídios brasileiros, os portadores de AIDS, por exemplo, como bem lembra Sakamoto.
É revoltante que interesses públicos e privados se enlacem assim sem nenhum pudor. Pior, que eles se invistam da legitimidade de cargos públicos e de autoridades para atuar abertamente segundo padrões e medidas diversos quando convém aos seus interesses. Igualdade é palavra chave para a justiça, tanto quanto a responsabilidade é cara à política. Enquanto esse termos forem simples acessórios no fazer político nacional, continuaremos a observar esse trânsito ilegitimo entre esses dois campos, em detrimento da sociedade brasileira, da população.