Argumentando por contaminação

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O argumento por contaminação consiste na identificação de similaridades entre domínios diversos visando transferir para um propriedades e características do outro. É um modo de argumentação bastante comum, especialmente em se tratando de política e direito internacional.

No âmbito internacional prevalece o adágio “a Força faz o Direito”. EUA, Israel, China, Rússia, grandes potências econômicas ou militares, fazem pouco caso de acordos, tratados e convenções estabelecidos entre Estados. No entanto a ruptura não é abrupta, ela vem invariavelmente mascarada por simulacros que coordenam argumentos emprestados ao ordenamento jurídico dos Estados, a fim de dar a impressão de que se reproduz no plano internacional o respeito às categorias longe das quais não podemos reconhecer a Justiça.

Dentre os recentes exemplos de argumentos dessa natureza estão a proclamada autodefesa israelense e as discussões acerca da legalidade da prisão de Guantánamo.

A autodefesa é aparentada da legítima defesa prescrita nas Constituições dos Estados. A legítima defesa corresponde ao dispositivo jurídico segundo o qual se reconhecem circunstâncias em que uma reação, mesmo que conduza à morte, é justificada em razão de uma ameaça prévia. Dentro de um Estado de Direito, os tribunais e juízes se encarregam de avaliar as provas e os argumentos que fundamentam a alegação de legítima defesa. A ausência de uma terceira parte independente já é o bastante para descartar a tese do “Direito de defesa”, ou da autodefesa. Sem ela, a discussão fica amarrada à subjetividade, pois que as partes envolvidas reclamarão o direito a defesa, cada uma segundo argumentos diferentes. Há ainda outros aspectos que invalidam essa alegação: a moderação no uso dos meios de resposta caracteriza uma defesa legítima. Tudo que Israel não pode alegar é que moderou sua reação. O planejamento antecipado também se junta a esses aspectos. Vamos pensar por imagens: se eu sou agredido com um soco e revido na hora, certamente pratico a legítima defesa; se atiram em mim e eu, para evitar a morte, atiro de volta, também me defendo. Mas se eu aguardo algumas horas, sigo o agressor até sua casa, espero que ele saia e então atiro, isso decerto não distingue uma defesa legítima. O planejamento, o cálculo, parece mais a conta de uma vingança. Entretanto, a circunstância ainda não considera os foguetes Qassam lançados contra Israel — declarados estopins dos ataques. Voltemos à imagem: se eu sou sistematicamente agredido, as leis prescrevem os meios e mecanismos através dos quais as agressões podem ser combatidas. A regularidade da agressão não faz o direito à defesa, direito esse circunstancial, que pela imediaticidade do perigo e do risco leva à momentânea substituição do poder do Estado, ausente, pelo poder do indivíduo que se defende. Uma ação planejada rompe essa condição, faz da morte não uma consequência infeliz de uma reação espontânea, que pela sua natureza, não pode estipular a totalidade dos efeitos que produz, mas o produto premeditado de uma estratégia calculada. Esse cálculo premeditado, exterior à circunstância imediata em que uma defesa seria legítima, é o atestado de que aquele que se diz agredido quer para si a função que no Estado de Direito caberia ao juiz, enfim, ao Estado. Israel quer não o direito a alvejar os pontos de onde partem foguetes Qassam — situação mais similar a um possível direito de defesa — mas o indefinido direito de julgar e executar quando e quem quer que se considere responsável pelos ataques. E então chegamos a outros pontos: as diferenças entre as duas partes e a identificação do agressor. O Direito de defesa não é salvo conduto ou carta branca para que o agredido aja segundo sua vontade. Isso fica claro na observação que se faz dos meios de resposta, no pedido de moderação. Há circunstâncias em que uma defesa parece sempre ilegítima, em que outras vias devem ser adotadas. Imaginem uma criança apedrejando um lutador de jiu-jitsu de mais de 100 kg. Nesse contexto, em que circunstância, apesar do dano que uma pedra pode causar (e ela pode levar mesmo à morte), uma reação, uma defesa é válida? A imagem não é propriamente adequada, mas o que se quer com ela é apenas sublinhar que a legitimidade da defesa encontra sempre um limite intransponível. As diferenças, ainda que não se ajustem perfeitamente à figura anterior, não podem ser desconsideradas e não são em qualquer tribunal do mundo. Por fim, a reação de defesa se dirige a um alvo conhecido. O perigo iminente a que se responde, numa caracterização de uma reação legítima, pressupõe que se identifique o agressor e os meios de agressão e que se responda a eles imediatamente. Já que Israel dispensou a imediaticidade característica, a ofensiva, que produziu um número assustador de baixas civis, seria legítima apenas se pudesse fazer equivaler palestinos e terroristas. Isto é, se os alvos fossem não só os militantes do Hamas mas todo e qualquer cidadão de Gaza. Como perguntou Chris McGreal: Are you a target if you voted for Hamas? Os atos de Estado não podem ser justapostos aos atos de civis no interior de um Estado de Direito. Quando o fazemos e se o fazemos abstratamente, corremos o risco de contaminar o atos repreensíveis de um Estado com a legitimidade prevista em lei sob determinadas circunstâncias. A aproximação reclamada pela reivindicação de um “direito” já denuncia uma tática de manipulação que não é outra coisa senão a tentativa de recobrir uma ação condenável.

Algo semelhante se dá quando se discute a legitimidade da prisão de Guantánamo. Questões técnicas e discussões intermináveis ocupam a opinião pública indefinidamente com um tema a que não se deveria destinar mais que alguns minutos. É uma espécie de chicana política. Nenhuma Constituição do mundo concebe a Justiça nos termos em que ela é tratada em Guantánamo. Nenhum princípio para em pé, ali. Estender essa discussão é apenas protelar convenientemente o protesto e as medidas diplomática cabíveis a tão explícita violação dos códigos nacionais e internacionais de justiça. Democracia, para os ingênuos, não é aceitar indiscrimadamente qualquer oposição ou diálogo. É preciso mesmo negar o diálogo quando ele não estiver contextualizado no patamar e no domínio mapeado pelos princípios que regem as práticas democráticas, ou quando estiver a serviço de atos incompatíveis com os princípios fundamentais dos direitos humanos. Discutir a legitimidade de Guantánamo não é se mover no interior de um espaço onde se busca validar ou invalidar uma interpretação, mas já estar instalado fora do domínio prescrito pelos princípios mais fundamentais da Justiça, princípios que, de saída interditam a legitimidade que se pretende. Nesses casos a discussão testemunha o esforço para protelar a ação imediata que deveria se seguir às violações dos códigos internacionais e a tentativa de contaminar de legitimidade um debate de princípio ilegítimo.

Nos casos em que se argumenta por contaminação, aceitar o debate significa permitir que se emparelhem conteúdos apenas por conveniência, ignorando diferenças insuperáveis. A melhor resposta então é a recusa organizada, política, ativa.

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