Escutas, grampos e garantias invididuais

E
O Brasil não é um país de políticas profiláticas. O Estado se organiza a medida que os problemas surgem — e não há outra rota de orientação. Por exemplo, o caso da linha 174 deveria ter produzido mudanças no comportamento da polícia no contexto de um sequestro. No entanto, episódio semelhante se repetiu em Santo André, com a menina Eloá. A polícia de São Paulo, nomeadamente a mais preparada do país, agiu com vistoso amadorismo. Os eventos são catalisadores das ações do Estado, embora nem sempre sejam o bastante.

Vejamos outro caso, o jornalista da Globo Heraldo Pereira entrevista o ministro Gilson Gipp e lhe pergunta: o que o senhor pode assegurar ao cidadão quanto às interceptações telefônicas, ministro?

A indignação de William Wack é comovente

Bem, mas então escutas telefônicas são agora um problema público assim como a ação da polícia nos casos de sequestro? Nós sabemos que as estratégias da polícia foram postas em cheque em função de casos particulares. Qual é o gatilho que dispara “nossa” preocupação com as escutas telefônicas? Que evento mobilizou a atenção do Estado? Adivinhem? O caso Daniel Dantas. E eu pensei que importante mesmo nesse caso era averiguar de que modo se organizou uma rede de poder, influência e corrupção no interior do Estado brasileiro e quem eram seus agentes. Qual nada!, o grande serviço que nos presta a operação Satiagraha e o caso Daniel Dantas é o alerta para o grave problema de ordem pública: a corrupção as escutas telefônicas. As escutas telefônicas têm, há décadas, obstruído o caminho do país rumo ao desenvolvimento democrático. Elas desviam dinheiro público, enformam as políticas estatais, negligenciando os interesses do povo. Por fim, atalhando uma descrição mais demorada desse mal tupiniquim, devemos admitir que se falta o planejamento que nos permitiria antecipar problemas, é preciso agradecer o aparecimento de eventos cruciais, tais como o caso Daniel Dantas, que nos permite um inédito aperfeiçoamento institucional.

(Modo ironia desligado). É uma tática curiosa e eu já a havia insinuado ao final do texto anterior: os problemas reais são mascarados, invertidos e, no caso particular em exame, formulados de maneira a parecerem integrados a um arco de problemas que efetivamente interessa à população, ao “cidadão”. Para os cínicos, um esclarecimento, o recurso às escutas não deve ser arbitrário e tampouco eu estou dizendo que ele é incondicionalmente legítimo, mas isso nada tem a ver com o que eu exponho aqui: o que eu quero é mostrar que atrás do interesse do cidadão há o interesse de um cidadão. Que a mobilização da cidadania, da legalidade e das garantias individuais é apenas o expediente pelo qual os interesses de Daniel Dantas são defendidos. (Uma analogia, para esclarecer: Bush, para invadir o Iraque, contou com estratégia semelhante. Hipostasiou armas de destruição em massa e, ainda que sem nenhuma comprovação, obteve a justificativa necessária para a invasão). Repito, quanto mais obscuro melhor. Mas poderia ser também: quanto mais abstrato melhor. Leiam o excelente comentário de um leitor de Nassif que representa um procedimento análogo:

À medida que o julgamento do HC de DD se desenrolava ficou evidente o “espírito de corpo” dos juízes do STF. Interessava a construção de um discurso de auto-preservação invocando seu papel na defesa dos princípios constitucionais, dos direitos individuais e da igualdade de todos perante à lei. Tal discurso era absolutamente abstrato, alienado até, porque tão somente era uma declaração de princípios e não se referia à nenhuma realidade concreta pois perderia seu objetivo: a defesa da corporação denominada STF. Por essa razão deixou-se de lado o motivo pelo qual a Corte havia se reunido: analisar a peça produzida pelo juíz de Sanctis. Todos os juízes devem ter lido com cuidado os motivos que levaram à decretação da prisão de DD expostos pelo juíz. Esses motivos e seu embasamento legal deviam ser tão contundentes que apropriar-se deles para refutá-los a partir de principios constitucionais, direitos individuais, igualdade perante a lei, etc., não seria possível, então optou-se pelo discurso abstrato.

Não comentarei o texto acima primeiro porque ele já é bastante claro, aponta com exatidão a tática que eu pretendi destacar nesse texto, segundo porque as minúcias e o alcance dessa espécie de argumento me levariam a escrever um texto longuíssimo sobre as sutilezas de um modo de afirmação que se constitui escapando aos meios de verificação, isto é, fugindo ao confronto direto com aquilo que pode ser um critério de falsificação — se instalando num domínio abstrato.

Por fim, voltando ao caso das escutas, lembremos que se não bastasse essa mobilização nefasta, há ainda um pano de fundo que lhe empresta “credibilidade”, informações alardeadas por advogados de Dantas deputados: as 400 mil interceptações telefônicas. Diante de um novo número divulgado pelo CNJ, absurdamente menor, o deputado Marcelo Itagiba (lembram dele? o deputado que está a caça de Paulo Lacerda, o ex-diretor da Polícia Federal que deu suporte a Satiagraha, antes de o governo enterrá-la) reagiu com indignação.

Quando é vamos mudar? (Esboço de uma resposta: quando a população dispensar um tratamento adequado às distorções que a imprensa, o governo e a oposição tem produzido, e quando der o devido valor aqueles que buscaram prender o bandido Daniel Dantas. Meu total apoio às manifestações do PSOL no sul do país em desagravo ao delegado Protógenes. É uma pena que Heloísa Helena não esteja no senado, com maior visibilidade. E há quem ache que os partidos menores não têm valor político — mania de importar modelos de análise política)

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