Chico e Francisco [2]

C

Assim que a Veja publicou a denúncia do suposto grampo envolvendo o ministro Gilmar Mendes, ele não tardou a decretar uma “crise institucional”. Belíssimas demonstrações de espírito cívico pulularam de todas as partes, sem maiores preocupações em apurar a veracidade das afirmações. Pra quê? A mera possibilidade já é o suficiente para montar um circo, certo? Eu, como já confessei, mal tenho lido os jornais, no entanto, colhi algumas notícias interessantes. Vocês devem estar mais informados do que eu, em todo caso fica o registro das notícias que anotei:

Inquérito deverá inocentar ABIN e PF

[…] o relatório colocará em dúvida a própria realização do grampo, dada a divulgação apenas da transcrição da conversa, sem o áudio.

General Felix diz que sabia que Abin não podia grampear telefones

O chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Armando Felix, disse hoje (14) que não ficou surpreso com o resultado de laudo da Polícia Federal, que concluiu pela impossibilidade de os equipamentos usados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) serem usados para grampear telefones.

Diante dessa nova configuração, não vi nenhum das vestais da ética e do bom uso da máquina pública descer de seus templos para defender a justiça claramente afrontada em seus princípios mais rudimentares. Duvido muito que Alexandre Garcia, Arnaldo Jabor, e tanto outros veementes defensores de tudo que é bom e certo, tenham se manifestado em defesa daqueles que foram injustamente apontados e sentenciados antes que se tivesse cumprido os ritos preliminares sem os quais não se pode realizar um julgamento justo. Por acaso a injustiça parece menos ameaçadora à democracia? Às Instituições Públicas cabe menos respeito do que aos membros que as constituem? A condição de servidor público é temporária, enquanto as Instituições têm, às vezes, décadas de tradição. Uma afronta dessa natureza deveria ser ainda mais constrangedora. Momento direita: mas nesse país de amadores, da personalidades, não de Instituições, um ministro bem articulado é mais importante que uma tradição inteira de serviços prestados aos interesses nacionais. De sorte que ninguém hesita em dispensar, quando buscam alvejá-las, os princípios que concedem ao mais ignóbil criminoso. Por isso há um agravante. Abster-se de opiniões e sentenças públicas (num julgamento informal) é mais do que um dever moral, ou manifestação de prudência indispensável aos agentes do Estado, é antes uma exigência da lei. Autoridades envolvidas na prática judiciária deveriam saber, melhor do que nós mesmos, que é preciso constituir prova antes que a mera possibilidade de julgamento seja considerada. Contra a ABIN e Polícia Federal, isso não se cumpriu. As atitudes e declarações assumiram como ponto pacífico as ilações que a Veja apresentou, sem qualquer evidência (perdoem a redundância de juntar, numa mesma construção, as expressões e “Veja” e “sem evidências”). Se não bastasse a exigência processual para que a precaução se mostrasse indispensável, seria mais do que suficiente levar em conta a mensageira da denúncia. Neste caso, o impulso de se manifestar, por maior que fosse a indigação, teria sido interditado pelo bom senso.

O mais curioso disso tudo — para atalhar a ladainha que fiz menção a despejar — é a reação do nosso ministro, motivo original desse meu comentário (por incrível que pareça). Gilmar Mendes abraçou ao peito a denúncia da Veja, sem cerimônia. Não considerou sequer a possibilidade de que a Veja não tivesse como provar suas alegações ou estivesse apenas ventilando informações cujos efeitos de algum modo lhe favoreciam. Não, isso a Veja não faria. Descartou a chance da revista ter agido, no exercício de sua tão cara liberdade, irresponsavelmente. No entanto, assim que a Carta Capital publicou uma matéria considerando o “conflito ético” manifesto no fato de o ministro ser sócio de um instituto que mantém contratos com o Governo Federal, ele prontamente disparou as seguintes declarações:

Trata-se de um fenômeno de pistolagem jornalística. Desde que houve o afastamento do diretor da Abin [Agência Brasileira de Inteligência], a Carta Capital vem fazendo sistemáticas críticas a mim, já fez duas capas comigo. Tudo indica que ela perdeu capital com isso […] Os senhores sabem: o Estado de Direito é na verdade um estado de liberdade, mas é um estado de responsabilidade também.

Ou seja, em duas ou três linhas, Gilmar Mendes sugeriu que a Carta Capital praticou aquilo que Nassif, em seu embate contra a Veja, chama de assassinato de reputação. Se ele chegou a esse raciocínio, bem, podemos considerá-lo apto a extrair a mesma conclusão no caso das relações entre Veja e Daniel Dantas, não? Mas o que importa é que todo caso gira em torno de dois padrões de julgamento bem diferenciados. Aqui, pau que dá em Chico, não dá em Francisco. Aos olhos do ministro, a responsabilidade no uso dos direitos estabelecidos só deve ser exigida daqueles que afrontam seus interesses. O que me faz lembrar duas frases:

Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a Lei.
(Frase controversa, cuja autoria já foi atribuída a Getúlio, Benedito Valares e Pinheiro Machado)

Além dessa, de que me sirvo constantemente:

Todos defendemos o Estado de Direito desde que não nos bata à porta.
(Antônio Cluny)

Uma certa margem de relatividade é aceitável, mas não quando tratamos de princípios constitucionais. De precauções e medidas que garantem a produção de sentenças e pareceres justos. No Brasil parece vigorar um problema que poucos se arriscaram a enunciam. Uma inaceitável relativização dos padrões de julgamentos. Em outras palavras, a prática costumeira que se expressa na frase “dois pesos, duas medidas”. Isso está bastante claro, por exemplo, no levantamento que Idelber fez sobre o tratamento que a imprensa paulista dispensou às recentes declarações veiculadas na campanha de Marta Suplicy. Tudo bem, a luta contra a ingerência dos interesses particulares de grupos representados pela imprensa nós já assimilamos em nosso quadro de combates, mas parece um profundo retrocesso permitir que o mesmo se realize no interior das nossas instituições. Precisamos estar atentos a estes abusos e considerar, acima de tudo, que nenhuma análise política — ou de qualquer outra natureza — pode ser plenamente legítima se desconsiderar os contextos nos quais ela se situa. Nesse caso em particular, as aplicações diferentes, em contextos semelhantes, nos levam a suspeitar do comportamento de um agente público. E se fôssemos tão descuidados quanto ele foi nos dois episódios, poderíamos afirmar que tudo indica que ele perdeu “algo” com “isso” — e aqui deixo a cargo de vocês, substituir a palavras destacadas.

Por fim, para tranquilizá-los — pois sei que vocês estão ansiosos — eu lhes asseguro que não há nenhuma crise institucional. Apenas aquela, financeira, que se dissolverá espontaneamente de acordo com a alardeada capacidade de autoregulação do mercado, como é de conhecimento de todos.

PS. Favor informar qualquer erro gramatical ou de grafia. O vinho, ao final do texto, tornou impossível o trabalho da minha já incompetente revisão.

Atualização: Notícia sobre nosso querido ministro. Vocês já devem estar cientes dela, mas ao lado das outras notícias, ela se torna peça chave para esclarecer o papel do ministro. Leiam: Dantas pediu para Mendes julgar processo em 2005.

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