O plano de argumentação de alguns colunistas é digno de interesse — especialmente o de Diogo Mainardi. Sua estratégia reduz-se a uma simples regra geral: afirmar que a mais contundente arma da inteligência é meramente destrutiva. Comentei um texto no qual o professor João Carlos sublinha essa face, ou melhor, esse emprego da inteligência — aliás, esse texto é imensamente adequado ao tema desse post. Para a constituição da escrita de Diogo, de seu estilo, essa mobilização da inteligência não é trivial — ao contrário, define o que lhe é mais peculiar. O que se segue à afirmação de uma inteligência corrosiva não é nada além do que uma terra arrasada. Nada resta em pé. A essa altura você pode se perguntar como tudo isso se relaciona com o título Estratégias de sedução? Não parece evidente? Como se reconhece a diferença neste espaço reduzido ao pó e à cinza? Perdoem-me pelo que se segue — não consigo pensa uma imagem melhor: Diogo Mainardi encena uma bizonha versão da dúvida hiperbólica cartesiana. Após ter duvidado de tudo, só lhe resta afirmar-se enquanto ser-na-dúvida (sinto-me quase um heideggeriano). Novamente peço perdão! (persigna-se três vezes pensando em Descartes). A destrutividade de Mainardi é uma das formas mais sutis e poderosas de auto-afirmação, ela contrapõe a um espaço exterior de precariedade, incompetência e despreparo (que nesse caso é o Brasil) a sua inteligência clarividente. É óbvio que, nessa configuração de discurso, as qualidades do autor que o próprio recorte do texto redesenha, afirmando-se a cada nova coluna, desempenham papel de maior destaque do que qualquer posição teórica que ele defenda. Lê-lo é colocar-se diante de um autor que reclama toda sua obra. Se o aspecto reclamado fosse outra coisa senão a qualidade de um crítico impecável — cujo gesto pontual, a cada nova coluna, desvela a aparência ilusória e denuncia a podridão escondida sob o véu de seda — talvez essa dependência entre discurso e obra não fosse problemática. O que legitima seus textos, contudo, não é uma argumentação brilhante e inescapável, mas o assentimento a tudo que eles representam. Nesse jogo cego as maiores barbaridades são consentidas apenas porque se compartilha um aspecto moral. Mas ainda não está exatamente clara a razão das estratégias de sedução. Bem, é simples, reconhecer o caráter iluminador dos golpes do martelo de Diogo é destacar-se da massa ignara que compra a realidade aparente que ele Mainardi destrói com gestos de enfado. É um longo festival de auto-afirmações. Ao final, tudo se resume a regra de simpatia que eu enunciei outrora: “Se quer parecer inteligente aos olhos de alguém, concorda com tudo o que ele diz”. Mainardi seduz ao colocar-se na condição de um privilegiado. Ao fazer das suas leituras mais do que uma simples perspectiva entre perspectivas, ele opera uma cisão cirúrgica, quase imperceptível, entre ele mesmo (e aqueles que estão dispostos a concordar com ele) e o resto — para o qual sobra, inevitavelmente, o papel do inferior, do ignorante. Define-se ignorante aqui como aquele que discorda de suas palavras, não através de uma definição direta, mas indireta, de uma coação minuciosamente articulada. Vejam o caso:
Paulo Coelho declarou à Playboy que é o mais importante intelectual brasileiro. É mesmo. Compare-os aos demais. Em termos de idéias e de linguagem, sua obra não é mais vexatória do que a de Antônio Candido. Depois de declarar que era o mais importante intelectual brasileiro, Paulo Coelho pediu ao repórter: “Refaz a frase para que eu não pareça arrogante”. O simples fato de se identificar como um intelectual brasileiro já é um atestado de modéstia. Ser o mais importante intelectual brasileiro é igual a ser a prostituta número quatro do Cazaquistão. Borat pode até se orgulhar disso, mas a gente sabe o que significa.
Fragmento da coluna de Diogo Mainardi do dia 13 de agosto. Só para constar, a coluna começa com a descrição de um episódio de Family Guy. Talvez você não tenha percebido, portanto preste atenção, a frase em destaque, aparentemente trivial, é o núcleo do texto. Ali o colunista convida seu leitor a testemunhar em favor de sua conclusão, óbvia, embora não enunciada (não enunciar a conclusão é um modo de enfatizar o elo entre o autor e seus fiéis leitores, de sorte que o sujeito sente-se prestigiado por partilhar uma conclusão, ainda que óbvia, com um colunista ilustre; bela estratégia retórica). Ele convida o leitor a admitir uma conclusão mais geral, a partir de uma série de outras conclusões anteriormente elencadas, tais como “Paulo Coelho é mesmo o mais importante intelectual brasileiro”, “A obra de Paulo Coelho não é mais vexatória que a Antônio Candido em termos de idéias e linguagem” e, sobretudo, “Ser o mais importante intelectual brasileiro é igual a ser a prostituta número quatro do Cazaquistão”. Recortar assim o texto pode parecer algo banal, mas não é. Você só aceita as conclusões de Mainardi se tomar como pontos pacíficos tais frases. O autor em nenhum momento se propõe a argumentar em favor de suas alegações. Ombrear Antônio Candido a Paulo Coelho é uma atitude que dispensa explicações, supõem Mainardi. Ora, ele está obviamente apoiado em sua obra. Está claramente assentado sobre sua fama de iconoclasta, que não deixa intocado nem uma das mais célebres personalidades do pensamento nacional. O alcance simbólico do gesto que, abrupta e categoricamente, põe na mesma ordem, Paulo Coelho, Antônio Candido e Peter Griffin, é certamente maior do que qualquer longa demonstração da legitimidade dessa união. Mainardi sabe que não precisará se explicar, sabe que o simbolismo do iconoclasta é mais sedutor do que o trabalho laborioso do pensador rigoroso (ainda que iconoclasta). Tem plena consciência que sustentar uma afirmação tal como “A obra de Paulo Coelho não é mais vexatória que a Antônio Candido em termos de idéias e linguagem” é muito mais difícil do que bradá-la em praça pública, como uma verdade renegada e maldita, cuja mera declaração atesta uma conduta arriscada, de bravura, por parte de quem a realiza. Como um gesto de coragem que vem acompanhado de outra verdade inconvientemente exposta, a de que o “intelectual brasileiro é um atestado de modéstia”.
Que espírito pequeno não se vê representado nessa vontade de apequenar nossa cultura, e de reduzi-la a uma escala de valores que nem mesmo se mostra? Afinal de contas, caberíamos perguntar, qual é a medida dessa modéstia? Que padrão define o que indispensável e o que é apenas modesto? Que critério separa o valor endereçado à prostituta número quatro do Cazaquistão daquele dirigido à prostituta mais desejada do mundo? Esse intercâmbio de categorias tão diversas só pode se realizar pela suposição de um terreno comum que, mais uma vez, apresenta o que há de astuto da postura de Mainardi. É a suposição de que o valor se define por um critério exterior. Americano, europeu, pouco importa, desde que não brasileiro. É a enunciação desse sentimento de inferioridade que muitos gostam de ver afirmado, como se tratasse de um trunfo socrático, uma espécie de “sei que nada sei”. A ignorância admitida, tal como a modéstia denunciada, desfaz as ilusões e coloca o sujeito consciente desse estado de coisas num lugar privilegiado em relação aos outros, pobres sombras vaidosas, que acreditam que tem alguma importância ser o maior intelectual brasileiro. A lucidez é compartilhada — “a gente sabe o que significa” —, como amigos que se olham em silêncio e, conhecendo um ao outro, sabem o que cada um pensa. Já está tudo tramado e o argumento, nesse lugar, pouco importa. Por isso ele nem se dá ao trabalho de argumentar com rigor. Sabe que o assentimento virá de uma forma ou de outra. Cuida apenas de organizar seus pressupostos e de temperá-los com um projeto de humor. Notem, em nenhum momento eu contra-argumentei. O que escrevi acima não é um contra-argumento, apenas destaquei no texto aquilo que é ponto pacífico e as condições necessárias para concluir que “ser o mais importante intelectual brasileiro é igual a ser a prostituta número quatro do Cazaquistão”. Além de apontar os elementos necessários para fazer o termo modesto/modéstia ser significativo no uso mobilizado por Mainardi. Tudo isso para mostrar que a coluna inteira se articula apenas por praxe, como uma etapa burocrática. As colunas desse autor são diálogos entre partes que dispensam esclarecimentos, que se conhecem e, portanto, podem suprimir demonstrações que seriam necessárias caso existisse entre eles alguém que simplesmente não soubesse ou não aceitasse o que eles tomam como certo. Como um matemático que, habituado à fórmula de Bhaskara, nem mesmo enuncia sua forma, passando diretamente ao resultado — para horror daqueles que, como eu, mal operam contas simples. É a antítese de qualquer coisa que possa ser definida como democrática, ou mesmo científica, pois o contrário está excluído apenas por convenção interessada em salvar seus próprios interesses. Nesse contexto, contra-argumentar é negar as frases que servem de suporte à conclusão. Esse trabalho eu não me dou. Saber quem é o maior, ou quem são os maiores intelectuais brasileiros, na minha opinião, é questão que se resolve por si — claro, pode envolver critérios extensamente abordados em livros, mas que certamente não dispensa um longo argumento cuja aceitação das suas apreciações primordiais é condição para admitir as conclusões, seja quem for seu beneficiário. Eu fico confortável com a afirmação de que Antonio Candido é um dos maiores intelectuais brasileiros, assim como não me constrange a negação do atributo de intelectual a Paulo Coelho. Mas o contrário poderia ser defendido e poderíamos fazer dessa questão uma pauta. Mas isso não é suficiente. É óbvio que a tarefa de quem assume a opinião contrária é extremamente difícil, mas o caso aqui é que Diogo não se ocupa disso, ele tão somente aplaina o terreno e dissolve o espaço do debate. Isto é, ao trazer a afirmação de que “ser o maior intelectual brasileiro já é um atestado de modéstia” ele desfaz o valor relativo a qualquer diferença e grau de intelectualidade entre brasileiros. Ao fazer isso ele se afirma, como afirma também aqueles que, com ele, sabem o que isso significa. É uma estratégia semelhante a da fábula do rei nu, que eu comentei por ocasião de uma outra questão. Ou seja, trata-se de condicionar uma opinião tornando qualquer outra depreciativa. Assim como qualquer um que admitisse não enxergar a bela roupa confeccionada com fios especiais feitos apenas para os olhos dos inteligentes teria atestado sua ignorância, qualquer um que não esteja disposto a aceitar a modesta condição de um intelectual brasileiro terá que prestar contas diante do tribunal internacional de intelectuais, ou melhor, diante da patente superioridade de tudo que é estrangeiro — pois é exatamente isso que está mobilizado, como sempre, no argumento de Mainardi. Quando mesclam-se o sentimento de inferioridade brasileiro ao reconhecimento da competência dos internacionais, admitir qualquer valor pátrio parece como confessar a incapacidade de enxergar a roupa do rei. Resta-me dizer que meu comentário não quer fazer dessa estratégia uma exclusividade do Mainardi, ela é empregada sobejamente tanto pela direita (que ele representa), com pela esquerda. O que me parece especialmente perigoso é o critério de diferenciação adotado por Diogo que faz das suas conclusões não o resultado da manipulação de argumentos, mas o produto da operação de qualidades que ele implicitamente divide com seus leitores. O mundo fica assim dividido entre pessoas que, como Diogo Mainardi, são capazes identificar a modéstia da qualidade de “intelectual brasileiro” e as pessoas que não o são. Pois essa capacidade não é o resultado de uma elaboração pública, explicitamente demonstrada e referendada por aqueles que a admitem, mas, antes, o efeito do acordo obscuro e nebuloso entre eles, cuja trama não deixa rastros. Em face disso tudo, você começa a compreender as palavras do Bruno Tolentino:
VEJA – Os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos não sabem inglês?
TOLENTINO – Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por exemplo, traduziram Rainer Maria Rilke e criaram a frase “ele tem um pássaro”, que é literal, mas que em alemão quer dizer que alguém tem uma telha a menos, é meio doido (…)
VEJA – Mas o que aconteceu com os críticos para que se tornassem tão incapazes, na sua opinião?
TOLENTINO – A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. (…) TOLENTINO – A cultura filosófica brasileira é quase nula. Nossos professores gastaram décadas lendo Marx, em vez de Husserl. Aqui só dá o tripé Kant, Hegel e Marx. E onde está a grande tradição escolástica que vai de Aristóteles a Husserl? Isso não é lido nem discutido aqui. Mas existe uma filosofia brasileira. Reale e Olavo de Carvalho, que não se formaram em lugar algum, não perderam tempo com essa estupidez. Foram estudar e aprender as tantas línguas que falam. Eu, quando tenho dificuldade com latim, grego ou alemão, é para eles que telefono.
As coisas então passam a fazer sentido, a iconoclastia empregada não é sem interesse, não se realiza como pura expressão de uma inteligência compreendida como ferramenta corrosiva — que serve mais pela destruição do que pela construção, ou pela crítica dialógica, polida, embora isso não lhe retire a dureza. Começamos a ver que essa iconoclastia é apenas o esforço para substituir um quadro de referências por outro, saem de cena os críticos, pensadores, intelectuais tradicionalmente reconhecidos, em favor de outros — convenientemente — Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi e companhia (a exceção de Miguel Reale, claro). Bem, as palavras do Tolentino eu poderia explicar pela sua própria entrevista:
VEJA – Por que o senhor acha os críticos brasileiros ruins?
TOLENTINO – O que os críticos disseram sobre meus trinta anos de poesia? Só, desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não suficientemente progressista. Que eu, o escritor Diogo Mainardi e – como é mesmo o nome do marido da Fernandinha Torres? – o diretor Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos de gente famosa.
Contudo, prefiro explicá-las em referência ao que há de comum com as de Mainardi, como industrioso trabalho para solapar a moldura do pensamento nacional cujo único critério público para descrédito é o fato que não lhes prestigiar o “talento”. Eu prefiro as palavras seguramente competentes e talentosas de um representante da direita por quem alimento profunda afeição. Repito, portanto, um fragmento já mencionado neste blog:
quem fala? e essa opinião é encarregada de privilegiar que gênero de vida? qual é, então, a avaliação que sorrateiramente inflete o uso da palavra? — Ora, quando os “bons e os justos”, orgulhosos de suas “convicções” e confiantes em seus “valores”, censuram o diletantismo (ou o ceticismo, ou o imoralismo …), eles não atentam à palavra que empregam, não suspeitam que essa palavra pejorativa implica todo o sistema de valorizações que é o seu próprio. (…) O que os homens mais facilmente esquecem é que, a todo instante, defendem o seu “território” animal. Quer se fale profissional, filosófica, sentimental, cientificamente — sempre se acredita, em algum momento, fazer referência a normas que valem para todos, a conceitos que têm o mesmo sentido para todos (e os nossos ideais “democráticos”, “igualitários”, assim como a nossa civilização burocratizada, levaram esta ilusão grega ao auge)
Lebrun que me perdoe pelo recorte, mas está aí espelhado esse conveniente esquecimento que o Mainardi — assim como o Tolentino — articula a seu favor. O esquecimento de que suas palavras são apenas veículos encarregados de privilegiar um gênero de vida, um quadro de valores, que, felizmente, é minoritário e desapreciado. Fazer do desapreço e da falta de talento resultante da aplicação dos valores que eles combatem o indicador do erro e da precariedade é valer-se de um expediente semelhante ao dos cristãos que, perseguidos, preferiram hipostasiar um além mundo que justificasse o sem sentido do seu sofrimento a combater as suas causas materiais. É uma estratégia que se mostra tão frágil quanto conveniente. No entanto, não se pode negar, é bastante sedutora.
Atualização 1: A escolha de Antonio Candido para figurar como igual de Paulo Coelho não é sem motivo. Imaginem o quanto irrita nosso brioso colunista esse tipo de declaração: Preservo convicções socialistas.
Atualização 2: Se você chegou até aqui através do texto do mestre Olavo, Dória Vigaristinha e seu devoto seguidor, sugiro que leia a resposta que dei às deturpações do mestre. Quero que você saiba que há cura, que muitos já se recuperaram do mal que constrange alguns a ler o “filósofo”. A iconoclastia é sempre sedutora, eu bem o sei, mas não se deixem levar pela falsa impressão de que há algo por trás disso, algo além do mero ressentimento, esse verme que corrói o coração da cristandade há séculos. Sintam-se a vontade também para apontar no texto a difamação que Olavo me acusa de cometer, ou qualquer deslize na argumentação nesse ou no outro texto. Olavo, sabe-se bem, já trilha o caminho da senilidade, mas alguém pode, assim o creio, enxergar com mais clareza e argumentar com mais precisão.