É indício de que alguma coisa vai mal quando precisamos enunciar aquilo que deve ser suposto. A autonomia do discurso em relação ao autor é patente desde Aristóteles e marca, como eu não canso de repetir, as falácias “ad hominem” e as concessões da Lógica ao Direito, no que diz respeito a credibilidade.
Arranhaponte é um sujeito esforçado, mas ele ignora os princípios fundamentais da argumentação, que asseguram a possibilidade de entendimento e até do desentendimento claro — que é tão necessário quanto o acordo. Por isso ele se alinha as bases de uma oposição truculenta, que age por atalhos e que quase sempre confunde discurso e autor e assim toma um pelo outro. Ao final o que ele produz quase sempre se resume a um agregado de psicologismo que se quer menos coerente do que polêmico, que comove porque obviamente mobiliza sentimentos e, como todos sabem, somos mais sensíveis aos sentimentos que as “frias” operações lógicas. (Pelo visto você anda um tanto sensível, Alon). Daí a necessidade de, a todo momento, pontuar tais distinções sem as quais não pode haver acordo, nem desentendimento (como Alon faz aqui).
Talvez sua sensibilidade se explique, Alon, porque você acredita que ele não sabe isso que você acaba de anunciar. O que não deixa de ser certa ingenuidade pois o que parece é que ele não entende ou que não quer entender para preservar o descompromisso que o abriga da crítica e o dispõe na condição privilegiada de franco atirador. Ou seja, não se surpreenda caso em breve ele se filie ao.. deixa pra lá.
A verdade não é uma qualidade transmitida do enunciador ao enunciado. Poderíamos colocar nesses termos gerais o teor das palavras de Alon. Autor e discurso não se confundem. Essa distinção marca a autonomia do texto, condição para que qualquer debate se situe no domínio público. Caso contrário bem poderíamos dispensar a lógica. Para usar os exemplos de Alon, se na condição de flamenguista o sujeito estivesse descredenciado para enunciar verdades sobre o Flamengo, restaria a ele nada além do silêncio. E a nós, apenas a tarefa de identificar aqueles que, na pretensão de falar sobre o clube, são flamenguistas. Ó que belo mundo encantado! Quase um filme do Charles Chaplin, pleno de gestos, mímicas! Haveria de nos deter ainda o problema de fazê-los aceitar que apenas a condição de flamenguistas é o bastante para tornar falsos seus enunciados sobre o Flamengo, problema facilmente contornado se propuséssemos o mesmo para o restante dos clubes. Torcedores do Bahia não falariam do Bahia, o mesmo para os corintianos, são paulinos, etc. Uma bela comunidade do silêncio! Até que atentássemos para nossa condição de brasileiros — calcule o terror da notícia pela qual se comunica que o que pensamos sobre o Brasil não passa de inverdade patente e inegável. Proponho que perguntemos aos argentinos o que deveríamos pensar de nós. Os embaraços se multiplicariam indefinidamente até que estagnássemos por medo de incorrer em falsidade. Morreríamos de inanição.
À parte a brincadeira bastante caricata, podemos extrair mais consequências da clivagem entre autor e discurso. Conservando essa distinção, pouco importa a condição do autor em relação ao discurso e seus efeitos. O objetivo de enfatizar a condição de flamenguista se explica pela tentativa de enfraquecer seus argumentos apresentando intenções e interesses em causa no debate, como se o interesse mobilizado em causa própria fosse algo pecaminoso, como se a isenção fosse não só preferível, mas necessária — cuja ausência atestaria com rigor lógico a falsidade dos enunciados. Essa articulação só passa despercebida para quem ignora as condições de possibilidade de acordo, para quem desconhece regras elementares no uso da linguagem que nos garantem um domínio público relativamente estável sobre o qual se desenvolvem debates de naturezas diversas. Já tive oportunidade de ler e comentar uma publicação do Arranhaponte, minha impressão, afirmo mais uma vez, é que seu texto está inteiramente viciado por componentes psicológicos. (Aliás, por acaso infeliz, este recurso é largamente usado por alguns articulistas de direita). Como as condições de verdade estão previamente estabelecidas pelas qualidades relativas aos objetos do seus comentários, tudo que ele exige é que seu leitor concorde consigo na identificação de tais qualidades. O que ele escreve, portanto, é mero acessório, adorno através do qual veicula seus propósitos. Para ser provocativo eu poderia falar de intenções, como, aliás, esboço no comentário acima, tratando do que ele entende ou não, mas não quero dar ocasião para ser incluído na mesma classe de autores-psicólogos; o que me interessa aqui são as consequências de tal estado de coisas. As despesas exigidas por um esforço semelhante de persuasão só vem a custo da total fragmentação do terreno público de debates. Não é a incompetência para o debate o que incomoda, mas a expansão do uso de uma modalidade de debates que inevitavelmente inviabiliza acordos, entendimentos e até desentendimentos.
O que deveria estar claro é que interesses e inclinações não modificam o valor de verdade dos enunciados. A verdade deve ser atestada quando verificamos que um enunciado preserva na conclusão a verdade das premissas que coordena, a despeito de quem a profere. A complexidade do argumento demanda uma análise minuciosa e podem haver invalidades no processo de derivação, contudo, não me interessam as etapas desse processo. Aqui, gostaria apenas de registrar a autonomia do discurso em relação ao autor e sublinhar que o vínculo entre um e outro é um expediente manjado daqueles que querem contaminar os textos com as qualidades e sentimentos que geralmente endereçamos aos que os escrevem. Quando, valendo-se desses expedientes, reivindicamos dos leitores essa afinidade com a qual o sentido do texto deve (necessariamente) contar, decerto estamos muito próximos de conseguir a anuência dos ignorantes, mas apenas ao preço da alienação da autonomia do próprio discurso, que resta, não como uma peça monolítica, inteiriça, mas como uma função insatura, incompleta, cujo valor de verdade oscilará de leitor para leitor com independência do que estiver escrito — pois o decisivo nesse tipo de texto não está na idéia que ele traz, mas nos sentimentos que desperta. A peça chave na articulação do sentido do texto não é um componente lógico, mas psicológico — e portanto não pode ser público. A pretensa universalidade do discurso cai por terra, se não partilhamos um lugar comum na linguagem, como esperar que em qualquer outro domínio possamos estar de acordo?
Por fim, a atividade dessas pessoas me faz lembrar uma regra de simpatia: “Se quer parecer inteligente aos olhos de alguém, concorda com tudo o que ele diz”.