O rei nu e a publicidade (I)

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Nos últimos dias estive às voltas com a idéia de escrever sobre publicidade. Mais precisamente sobre os meios pelos quais ela produz e fomenta o desejo. Curiosamente, algumas campanhas publicitárias me fazem lembrar da famosa fábula de Christian Andersen, A roupa nova do rei. A fábula do “Rei nu”, para os que não se lembram (se você não a leu, clique no atalho acima e leia, pois passo a tratar dela).

Passando-se por tecelões, dois vigaristas oferecem a um vaidoso rei uma roupa especial confeccionada a partir de tecidos que só não podem ser vistos por pessoas destituídas de inteligência, ou seja, invisível aos olhos dos burros. Cada um, súdito ou cortesão, vexado pela burrice demonstrada pela invisibilidade do tecido, cuidava de dissimulá-la rasgando elogios à roupa inexistente. Mesmo o rei não pode crer na sua incapacidade e só quando uma inocente criança sentenciou que o rei estava nu é que todos deram pela farsa.

Estratégia similar anima alguns profissionais da publicidade.

Contudo, vamos dar um passo atrás e examinar o que permite que algo semelhante atue com a mesma função na produção publicitária. Costumava-se tomar os adolescentes por indivíduos que enxergavam na pertença a um grupo uma forma de afirmação pessoal, a atitude que marcava uma espécie de ruptura com um segundo cordão umbilical. Minha teoria é que essa conduta tem se estendido a fases mais posteriores, mesmo a vida adulta. A unidade de um grupo é alvo fácil para os olhos de publicitários astutos; eles partilham elementos identitários que os caracterizam e, pois, para atingi-los basta identificar estes traços comuns. Aos mais afoitos adianto que esta não é uma crítica a grupos, mas a uma subordinação irrestrita da individualidade à coletividade. Entendia-se que tal subordinação era característica de um faixa etária definida que se distinguia pela volatividade própria aos períodos de transição. Na minha modesta opinião o deslocamento e assimilação dessa volatividade para fases posteriores da vida é efeito de alguma alteração que insisto em não ver com bons olhos. Porém, vamos permanecer no domínio da publicidade.

“Seja cabeça aberta”, “Você é o que é”, “Somos jovens e a juventude é tudo”, tais proposições não poderiam ser parte de campanhas publicitárias? Identificados os traços comuns, a todo momento somos instados a crer no vínculo entre o produto ou serviço que se quer vender e os predicados relativos aos nossos grupos. Sobra muito pouco espaço para aqueles que não se sentem parte disso tudo, de sorte que vexados pela inadequação — pois a adequação tem a força de um imperativo social — os que escapam ao apelo publicitário parecem inclinados a aceitá-lo para não se expor a execração pública, como os súditos e cortesãos que não estavam dispostos a revelar sua ignorância. O jogo está inteiramente dominado e não há quem se ponha além dos limites prescritos. O rei está nu, mas ciosos de nossos laços, agarramos o orgulho das nossas invenções adultas e refutamos a ingenuidade infantil que nos faria recobra a lucidez.

Não é a primeira vez que cito por aqui o Poema em linha reta, de Fernando Pessoa, mas creio que ele se faz indispensável nessa ocasião.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

(…) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

(…) Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Assim, seguimos acreditando nas nossas mentiras e imolando nossas impressões mais íntimas no altar da coletividade que não exige senão príncipes. E, sobretudo, consumindo despudoradamente aquilo que aos príncipes cabe consumir (ou seja, aquilo que determina a Santa Publicidade). Só assim somos iguais. Iguais na mentira! Ó feliz humanidade!

Tão logo eu recupere a paciência escreverei sobre outro aspecto que se aproxima igualmente a fábula mencionada. Numa segunda parte, hoje estou especialmente cansado!

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